A prisão do juiz investigado sob suspeita de vender sentença por 6,9 milhões de reais – e que jogou dois telefones no vaso sanitário quando a PF chegou para buscá-lo
ALLAN DE ABREU
09jul2020_18h44
Intervenção de Paula Cardoso sobre fotos reprodução/internet e inquérito da Polícia Federal
Ojuiz federal Leonardo Safi de Melo, 53 anos, levou um susto quando o alarme de incêndio do prédio onde mora, no bairro Paraíso, área central de São Paulo, disparou. Eram pouco mais de 6 horas da manhã do dia 30 de junho, terça-feira. Melo correu para a sacada do apartamento, de frente para a Rua Doutor Tomás Carvalhal. Do quinto andar, viu uma pequena confusão na portaria do edifício: sete policiais federais, com os indefectíveis coletes pretos, e dois policiais militares discutiam com o porteiro.
Temendo um assalto, o homem recusava-se a abrir o portão para a Polícia Federal. De nada adiantou a delegada chefe da equipe identificar-se e mostrar o mandado judicial para aquele endereço. Enquanto discutia com os policiais, o porteiro chamou a PM. Quando parte da equipe da PF começou a pular a grade do prédio, o porteiro acionou o alarme de incêndio, acordando os moradores, entre eles o juiz Melo.
Ao perceber a Polícia Federal na entrada do edifício, o magistrado entrou em pânico. Antes que os policiais tomassem o elevador, ele pegou seus dois telefones celulares, jogou no vaso sanitário e deu descarga. Mas os aparelhos eram grandes demais para seguirem pela tubulação. Quando os policiais tocaram a campainha, o juiz, ainda de pijamas, abriu a porta, tentando demonstrar tranquilidade. Os agentes vasculharam toda a casa até encontrarem os dois celulares boiando na água da latrina. Depois de fotografar a cena insólita (a imagem consta no inquérito obtido pela piauí), os policiais retiraram os aparelhos da água e pediram ao juiz as senhas de acesso. Melo recusou-se a fornecer. A equipe da PF recolheu documentos e computadores, além de 30 mil reais e 11 mil dólares em espécie, e em seguida a delegada disse ao juiz que ele estava preso.
Era o ápice de uma investigação de três meses da Polícia Federal para apurar denúncias de um esquema instalado na 21ª Vara Federal Cível de São Paulo, na qual Melo atua como juiz titular. Tudo começou no fim de 2019, quando dois advogados da Empreendimentos Litorâneos S/A constataram que chegara ao fim o processo judicial que discutia o valor da indenização devida à empresa pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pela desapropriação, em 1986, de uma área de 6,9 mil hectares em Eldorado, Sul do estado de São Paulo. Somente pelas benfeitorias do imóvel o Incra deveria pagar à empresa 777,6 milhões de reais – o valor da terra nua permanece em discussão na Justiça.
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Os advogados da empresa ingressaram com uma ação na 21ª Vara Federal Cível, onde tramitava o processo original do caso, para que a sentença condenatória do Incra fosse cumprida, e o pagamento, efetivado. Para calcular o valor exato devido à Empreendimentos Litorâneos, o juiz Melo nomeou o perito particular Tadeu Rodrigues Jordan, que já atuara em outros processos na mesma vara. No dia 12 de fevereiro deste ano, os dois advogados se reuniram com Jordan no escritório deste último, na Barra Funda, para debater detalhes do caso. Em certo momento, o perito convidou uma quarta pessoa para a reunião: o diretor da Secretaria da 21ª Vara, Divannir Ribeiro Barile. O servidor público disse estar preocupado com o andamento do processo e propôs uma solução rápida para agilizar o pagamento do precatório do Incra – por lei, para que a empresa recebesse o valor em 2021, o juiz teria até o dia 30 de junho deste ano para determinar o pagamento. Em troca, Barile propôs o pagamento de uma propina de 6,9 milhões de reais, equivalente a 0,9% do valor total do precatório, a ser pago em três parcelas. Para dar credibilidade ao pedido, o diretor da secretaria sugeriu que falava em nome dos “ingleses” – em referência ao juiz Melo.
Os dois advogados saíram do escritório assustados. Com o aval dos proprietários da Empreendimentos Litorâneos, no início de março procuraram a Superintendência da Polícia Federal na capital paulista para delatar o achaque que haviam sofrido. Com autorização do Órgão Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, responsável por investigar os juízes federais paulistas, começava a Operação Westminster, famoso distrito no Centro de Londres – o nome alude ao termo utilizado pelo servidor público para se referir ao magistrado.
Orientados pelo delegado Alberto Ferreira Neto, os advogados da Empreendimentos Litorâneos agendaram no escritório de um deles, na Avenida Paulista, uma segunda reunião com Jordan e Barile, às 11h30 do dia 10 de abril. Na data anterior, agentes da PF instalaram diversas câmeras e microfones ocultos na sala onde ocorreria o encontro. Enquanto os dois advogados recebiam o perito e o servidor público, um grupo de policiais acompanhava tudo no cômodo ao lado. Barile foi direto ao ponto:
– Gente, eu vou deixar bem claro uma coisa, pra gente poder avançar tudo aqui, eu tô sendo “longa manus” do cardeal lá, e ele é “combinou tá combinado” […]. Uma coisa que ele sempre me pontuou é o seguinte, em outros negócios que a gente fez: teria a possibilidade de uma parte, não importa o volume, [ser] em dinheiro?
– Mas quanto isso é, em termos representativos? – perguntou um dos advogados.
– Eu acho que, pra dar uma diluída nisso aí, é 10% a 20% em dinheiro, é uma coisa que quebraria bastante essa movimentação financeira […]. Pode ser dólar ou real, e se precisar uma outra possibilidade, eu tenho amizade com um doleiro, se precisar receber pelo doleiro também dá pra receber – respondeu o diretor da secretaria.
Um dos advogados se mostrou inseguro:
– Assim, eu não o conheço, o doutor [Leonardo Melo] é ponta firme?
– Porra! – exclamou Jordan.
– A batuta do mando é dele, mas a operação é minha – afirmou Barile. – É, ele que traça a estratégia “ó vamos nesse aqui e deixa…”, porque tem outros casos também. Ele que faz, ele que faz a estratégia, “não, esse daqui, esse daqui, isso aqui esquece, isso aqui você decide assim”. Ele manda decidir, eu vou cumprir o que ele manda decidir.
No fim de maio, Barile telefonou para o juiz Melo para dar detalhes do caso da Empreendimentos Litorâneos – os telefones de ambos já estavam grampeados pela PF com autorização judicial:
– Então, quer dizer, não, não rolou, então? Eles não… caíram fora? – perguntou o magistrado.
– Eles pediram para que o Incra pague a perícia.
– Sei. Ah, os caras tão de brincadeira, Divannir […]. Então seu sexto sentido tava certo naquele do Empreendimentos [Litorâneos], os caras tavam meio ressabiados.
Aterceira e última reunião do grupo ocorreu no início da tarde de 8 de junho, novamente no escritório do perito Jordan, na Barra Funda. Como a PF não poderia controlar o cenário como no encontro de abril, os agentes trocaram dois dos botões superiores da camisa de um dos advogados da Empreendimentos Litorâneos por uma câmera e um microfone disfarçados de botões. Logo após o almoço, Barile chegou ao prédio onde mora o juiz Melo. De lá, ambos seguiram em um automóvel sem placas até o escritório do perito – toda a movimentação foi acompanhada por policiais à paisana. Jordan recebeu o magistrado e o servidor no subsolo do edifício, e de lá encaminhou-os até a sua sala por uma entrada nos fundos do prédio. Para passar pela roleta sem precisar identificar-se na portaria – e, assim, deixar registros de sua presença –, Melo utilizou o crachá da mulher do perito. Os três subiram até o décimo andar pelas escadas, evitando as câmeras dos elevadores.
Na sala de reunião do escritório, havia seis cadeiras. O perito sentou-se em uma das pontas, e os dois advogados da empresa, em um dos lados da mesa. Cerca de quinze minutos mais tarde, Melo entrou na sala com Barile. Com calça preta e camisa polo da mesma cor, o juiz utilizava uma máscara de tons verdes e desenhos de camuflagem. Os dois se sentaram de frente para os dois advogados na mesa. Um dos advogados se mostrava tenso:
– A gente precisa saber, acho que todos nós precisamos nos blindar,
então os senhores têm certeza que estamos todos blindados, sem problema nenhum, doutor? – disse um deles, olhando para o juiz.
– Sem problema – respondeu Melo.
– Isso não extravasa, isso não ultrapassa, é… Sem querer fazer piada
numa coisa que é séria, né, ninguém quer ser matéria do Jornal Nacional, né, doutor?
– Não.
Naquela conversa, gravada e filmada, as partes acordaram que a propina de 6,9 milhões de reais seria paga em três parcelas: a primeira no dia 25 de junho e a segunda quando o valor do precatório fosse incluído no Orçamento da União. Sobre a terceira, os advogados propuseram que fosse paga quando os 700 milhões de reais fossem liberados, em 2021. O juiz concordou: “Por mim, tudo bem.”
A conversa com Melo e Barile durou menos de dez minutos. Depois de levar o juiz e o servidor até o subsolo do prédio, o perito retornou à sala com as advogadas Deise Mendroni de Menezes, ex-servidora da Justiça Federal de São Paulo, e sua sobrinha Clarice Mendroni Cavalieri. Logo ficou claro o papel delas no esquema: “esquentar” o dinheiro da propina por meio de um falso contrato de prestação de serviços advocatícios.
– Pra gente operacionalizar, nós temos que fazer um contrato de prestação de serviço, o meu escritório fazendo uma prestação de serviço, aí […]. Eu preciso de um e-mail pra eu encaminhar os termos do contrato, aos senhores ou a quem de direito, ou as sugestões que os senhores vão fazer – afirmou Menezes.
– Só aquela questão que eu fico muito preocupado, a gente tem que
ter muita reserva, o que tá sendo feito aqui é uma coisa de matéria de jornal – disse um dos advogados.
– Fantástico inclusive – respondeu Cavalieri, em alusão ao programa da TV Globo.
Poucos dias depois, Deise Menezes encaminhou para o e-mail dos advogados a minuta do contrato, que previa o pagamento, ao escritório dela, de 0,9% do valor devido à Empreendimentos Litorâneos pelo Incra em três parcelas, exatamente nas datas acordadas anteriormente com o juiz Melo e o diretor Barile. A Menezes mantinha negócios suspeitos com o magistrado. Na caixa de e-mails do juiz, a PF encontrou cópia de um contrato de 2018 que tratava da compra de um imóvel em nome do filho de Melo no bairro do Brooklin, em São Paulo, pelo valor de 264 mil reais, dos quais 60 mil reais foram pagos com um cheque da conta da advogada Deise Menezes. Para o Ministério Público Federal, o contrato indica um possível fluxo financeiro ilícito da advogada para o juiz federal.
No dia 25 de junho, quando deveriam depositar a primeira parcela do suborno, os advogados telefonaram para Jordan e, a pedido do delegado da PF, pediram mais alguns dias para fazerem o pagamento. Era o tempo que a Polícia Federal precisava para deflagrar a operação Westminster. Além de Melo, foram presas por determinação da desembargadora Therezinha Cazerta mais cinco pessoas, entre elas o perito Jordan, Barile, e as advogadas Menezes e Cavalieri. O grupo é investigado por corrupção passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Melo ocupa uma cela individual da carceragem da Superintendência da Polícia Federal, na Lapa. Na quarta-feira, 8, o Órgão Especial do TRF transformou a prisão temporária do juiz em preventiva, sem prazo previsto.
Além do episódio do precatório da Empreendimentos Litorâneos, a PF suspeita que Melo, Barile e Jordan agissem ilegalmente em outros processos da 21ª Vara Federal Cível da capital. Entre o fim de abril e o início de maio, Barile teve dois encontros no restaurante do hotel Emiliano, no Jardim Paulista, com Menezes, Cavalieri e o advogado de uma empresa em uma ação de desapropriação que tramitava na Vara de Melo. Dias depois, o juiz deu decisão favorável à empresa daquele advogado. Para o MPF, a decisão do magistrado ocorreu “possivelmente devido ao recebimento de vantagem indevida”.
Em outro episódio, o juiz pareceu escorregar nas palavras quando falava ao telefone com Barile sobre um dos processos que tramitam em seu gabinete:
– Ó, e aquele lá do Ribas, […] eu vou fazer um cálculo lá do supostamente incontroverso e expedir o precatório, quero nem
saber – disse Barile.
– Expedir o precatório, mas sem acertar nada com o cara? – perguntou o magistrado.
Nesse momento, o subordinado interrompeu o chefe:
– Peraí que eu vou te ligar aí.
Outro detalhe que chamou a atenção dos procuradores do MPF foram os altos valores dos honorários pagos ao perito Jordan por decisão do juiz Melo, quase sempre em torno de 200 mil reais – o perito atua em ao menos dezenove ações em trâmite na 21ª Vara Federal Cível. Para os procuradores, “as distorções relacionadas aos elevados arbitramentos de honorários – sempre em favor do perito Tadeu Rodrigues Jordan – sugerem que a organização também atue na divisão de valores relacionados às perícias, o que pode configurar a prática do crime de peculato”.
O advogado Carlos Kauffmann, que defende o juiz Melo, disse que não pode se pronunciar sobre o inquérito porque a investigação tramita sob sigilo. Já João Manssur, advogado de Barile, disse que a prisão não é justificada e que “tem ares de antecipação de pena”. Por isso, pediu ao TRF a prisão domiciliar do servidor público. As defesas das advogadas Menezes e Cavalieri disseram considerar “uma arbitrariedade” as prisões de ambas, sobretudo pelo fato de a primeira ser idosa – tem 67 anos – e a segunda estar grávida. A piauí não conseguiu contato nesta quinta-feira, 9, com o advogado de Jordan, Rafael Bernardi Jordan, filho dele. A reportagem enviou e-mail a ele, mas não houve retorno.
Diálogos vazados mostram proximidade entre PF, procuradores e o FBI no caso da Lava-Jato, incluindo “total conhecimento” das investigações sobre a Odebrecht
Por Natalia Viana, Rafael Neves, Agência Pública/The Intercept Brasil
Nos seus pouco mais de 20 anos no FBI, a agente especial Leslie R. Backschies esteve diversas vezes no Brasil. Backschies, cujo nome do meio é Rodrigues, com a grafia portuguesa, é fluente na língua nacional e vem ao país desde pelo menos 2012, ano em que há um primeiro registro de uma visita sua à Polícia Militar de São Paulo. É, também, a única foto que se encontra na internet dessa notável agente do FBI – embora esteja longe da câmera e de óculos escuros. O objetivo daquela visita era firmar parcerias para capacitação de policiais para responder a ameaças terroristas antes da Copa de 2014.
Leslie R. Backschies, a segunda à esquerda, e mais quatro agentes do FBI visitaram o Grupamento de Radiopatrulha Aérea (GRPAe) da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP)
Ao longo de sua carreira, Leslie trabalhou na divisão de Segurança Nacional do FBI, atuando nas áreas de contraterrorismo e resposta a armas de destruição em massa – ela foi co-autora de um guia sobre armas biológicas para o site Jane’s Defense.
Trabalhando para a Divisão de Operações internacionais do FBI, em 2012 Leslie mudou-se para a América do Sul, passando a viver em local não revelado, de onde supervisionava os escritórios do FBI nas capitais do México, Colômbia, Venezuela, El Salvador e Chile, além dos agentes do FBI lotados na embaixada em Brasília. No mesmo posto, comandou operações da polícia federal americana em Barbados, República Dominicana, Argentina, Panamá e no Canadá.
Mas nos últimos anos, a carreira de Leslie deu uma guinada. De especialista em armamentos e terrorismo, ela passou a se dedicar a investigar casos de corrupção e lavagem de dinheiro na América Latina – com destaque para o Brasil.
Em 2014, Leslie foi designada pelo FBI para ajudar nas investigações da Lava Jato. A informação consta de reportagem do site Conjur sobre evento promovido pelo escritório de advocacia CKR Law em São Paulo, em fevereiro de 2018, que contou com presença dela. A atuação de Leslie foi considerada “um trabalho tremendo” e “crítico para o FBI” pelos seus supervisores, segundo seu ex-chefe afirmou em um evento sobre o combate à corrupção em Nova York no ano passado acompanhado por uma colaboradora da Pública.
Leslie se tornou especialista na legislação FCPA, Foreign Corrupt Practices Act, uma lei americana que permite que o Departamento de Justiça (DOJ) investigue e puna nos Estados Unidos atos de corrupção praticados por empresas estrangeiras mesmo que não tenham acontecido em solo americano. Foi com base nessa lei que o governo americano investigou e puniu com multas bilionárias empresas brasileiras alvos da Lava Jato, dentre elas a Petrobras e a Odebrecht, que se comprometeram a desembolsar mais de US$ 4 bilhões em multas para os EUA, Brasil e Suíça.
Hoje morando de novo nos Estados Unidos, Leslie comanda a Unidade de Corrupção Internacional do FBI, cuja grande novidade no ano passado foi um escritório aberto em março em Miami apenas para investigar casos de corrupção na América do Sul, o Miami International Corruption Squad.
A unidade conta com seis agentes especiais, um supervisor e um contador forense que atuam na cidade conhecida por receber exilados cubanos, venezuelanos e, mais recentemente, uma enxurrada de ricos brasileiros. “Você não pode apenas ter um agente ou dois em um escritório em campo trabalhando com isso…. Não dá para trabalhar com isso apenas duas ou três horas por semana. Assim não vai funcionar. Você precisa de recursos dedicados em período integral”, afirmou Leslie à à Agência de Notícias Associated Press.
O esquadrão para América do Sul é o quarto esquadrão do FBI especializado em corrupção internacional. Todos foram abertos nos últimos cinco anos – ao mesmo tempo que a maior investigação de corrupção da história brasileira varria o continente.
A reportagem pediu uma entrevista a Leslie Backschies, mas não obteve resposta até a publicação.
Cinco anos depois, Leslie parece bastante satisfeita com os resultados. “Nós vimos muita atividade na América do Sul — Odebrecht, Petrobras. A América do Sul é um lugar onde… Nós vimos corrupção. Temos tido muito trabalho ali”, disse ela à Agência de Notícias Associated Press no começo de 2019.
“Não dá pra ser melhor do que isso”, ela afirmou no evento da CKR Law em São Paulo. “Nossa relação com o Brasil é o modelo de colaboração para países lutando contra crimes financeiros”.
“Isso é apenas o começo. Temos o enquadramento correto, a vontade e os fundos para continuar trabalhando juntos”,
“Agentes do FBI já apoiaram” 10 medidas contra a corrupção
Em outubro de 2015, Leslie fez parte da comitiva de 18 agentes americanos que foram a Curitiba se reunir com procuradores e advogados de delatores sem passar pelo Ministério da Justiça, órgão que deveria, segundo a lei, intermediar todas as matérias de assistência jurídica com os EUA, segundo revelaram Agência Pública e The Intercept Brasil.
A proximidade com a equipe da Lava Jato era tanta que Leslie foi um dos agentes do FBI que posaram com um cartaz apoiando o projeto de lei das 10 Medidas Contra a Corrupção, bandeira da Força-Tarefa e em especial do seu chefe, Deltan Dallagnol, que foi derrotada no Congresso Nacional.
Em um chat com Deltan em 18 de maio de 2016 constante do arquivo entregue ao site The Intercept Brasil, a procuradora Thaméa Danelon, ex-coordenadora da Força-Tarefa em São Paulo, brincou antes uma viagem para os EUA: “Vou tentar tirar uma foto c a Jennifer Lopes e o cartaz das 10 Medidas”, brinca ela. “Os agentes do FBI já apoiaram. Mas não pode publicar a foto ok? Eles não deixaram”, explica Thaméa, enviando a foto a seguir.
Thaméa Danelon, ex-coordenadora da Força-Tarefa em São Paulo, e Deltan Dallagnol, chefe da Força-Tarefa da Lava Jato
A imagem foi posteriormente apagada e não consta do arquivo entregue ao Intercept. Se divulgada, ela poderia causar uma saia justa ao MPF por se tratar de autoridades estrangeiras atuando em uma campanha legislativa nacional.
Thaméa diz que na foto todos são agentes, com exceção de uma tradutora brasileira. Mostrando familiaridade com a agente americana, Deltan Dallagnol se entusiasma e diz que a imagem lembra o filme Missão Impossível, estrelado por Tom Cruise. “Legal a foto! A Leslie está em todas rs”.
A foto havia sido tirada em São Paulo um dia antes, em 17 de maio de 2016, quando Thaméa participou, junto com Leslie, de uma palestra para 90 membros do MPF paulista. Estavam lá também os agentes Jeff Pfeiffer e Patrick Kramer, além de George “Ren” McEchern, então diretor do Esquadrão de Corrupção Internacional do FBI em Washington – e chefe de Leslie.
Promovida pela Secretaria de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Procuradoria da República em São Paulo, a palestra teve como objetivo ensinar o funcionamento da FCPA. “Foi uma excelente oportunidade para aprendermos sobre um eficiente sistema de combate à corrupção”, ressaltou Thaméa no evento.
A fala de Leslie Backschies não foi reproduzida online. A reportagem pediu as fotos do evento à procuradoria, mas a assessoria de imprensa respondeu que “infelizmente tivemos um problema no nosso backup e perdemos alguns registros de anos anteriores, inclusive esse evento”. Questionada via Lei de Acesso, o MPF fez uma dupla negativa: “E mesmo que tivéssemos estas imagens, elas precisariam de autorização de uso das pessoas fotografadas (palestrantes e espectadores), documento que não foi requisitado no evento”.
Meses depois, foi a vez de Thaméa ir a Washington para dar um curso ao FBI sobre a Lava Jato, conforme revela um diálogo com Deltan Dallagnol em 11 de Outubro de 2016 a partir das 16:47:23. “O FBI pediu pra eu falar sobre a Lavajato no curso em Washington, tudo bem? Vc me mandaria um material em Inglês? Eles tb. querem q eu fale sobre as 10 Measures!!!! show heim? até eles já sabem da campanha!!!”
Deltan responde: “Animal. Não é tudo bem. É tudo excelente!!!!!”
As mensagens foram reproduzidas com a grafia encontrada nos arquivos originais recebidos pelo The Intercept Brasil, incluindo erros de português e abreviaturas.
Segundo um documento constante dos arquivos da Vaza Jato, em 2015 havia nove policiais americanos lotados na embaixada de Brasília e no Consulado de São Paulo, incluindo do FBI, da Polícia de Imigração e Alfândega e do Departamento de Segurança Interna.
Com base nos diálogos e em apuração complementar, a Agência Pública conseguiu localizar, além de Leslie Backschies, 12 nomes de agentes do FBI que atuaram nos casos da Lava Jato em solo brasileiro.
Pela lei, nenhum agente americano pode fazer diligências ou investigações em solo brasileiro sem ter autorização expressa do Ministério da Justiça, pois as polícias não têm jurisdição fora dos seus países de origem. O FBI e a embaixada dos Estados Unidos se negam a detalhar publicamente o que fazem seus agentes no Brasil. Mas um documento da própria embaixada, obtido pela Pública, revela como funciona esse trabalho. Trata-se de um anúncio em 19 de outubro de 2019 em busca de um “investigador de segurança” para trabalhar na equipe do adido legal e passar 70% do tempo fazendo investigações. “Essas investigações são frequentemente altamente controversas, podem ter implicações sociais e políticas significativas”, diz o texto do anúncio, escrito em inglês. O anúncio avisa que o policial terá de viajar de carro, barco, trem ou avião por até 30 dias “para áreas remotas de fronteira e para todas as regiões do Brasil”.
Questionada pela Pública sobre a atuação de agentes do FBI em território brasileiro e sobre a parceria com os membros da Lava Jato, a embaixada americana respondeu através de uma nota: “O FBI colabora com as autoridades brasileiras, que conduzem todas as investigações no Brasil, inclusive todas as investigações que envolvem o Brasil e os EUA. As autoridades federais e estaduais brasileiras trabalham rotineiramente em parceria com as agências policiais dos EUA em uma ampla gama de questões. Os Estados Unidos e o Brasil mantêm uma excelente cooperação policial na FCPA, mas também no combate ao crime transnacional e em muitas outros ámbitos de interesse mútuo. Procuramos oportunidades de aprender com todas as nossas investigações. Um intercâmbio de boas práticas faz parte da boa cooperação que desfrutamos com nossos colegas brasileiros”.
Há dezenas de menções ao FBI e seus agentes nos diálogos constantes da Vaza-Jato analisados pela Agência Pública e Intercept Brasil. Fica claro que o relacionamento mais constante é entre membros da PF brasileira e agentes do FBI.
“A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta”
À frente da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da Procuradoria-Geral da República, o procurador Vladimir Aras alertou diversas vezes para problemas legais envolvendo a colaboração direta com agentes do FBI.
Uma conversa bastante tensa, em 11 de fevereiro de 2016, revela até que ponto a PF mantinha proximidade com o FBI e desconfiava do governo de Dilma Rousseff. A ponto de o próprio chefe da Lava Jato, Deltan Dallagnol, admitir ao secretário de Cooperação Internacional da PGR que a PF preferia tratar direto com os americanos a seguir as vias formais.
Às 11:27:04, Deltan pede que Aras olhe um email enviado para os Estados Unidos. Aras se surpreende com o teor: tratava-se de um pedido de extradição de um suspeito da Lava Jato. Não fica claro quem é a pessoa a quem se referem. O pedido, informal, havia sido enviado ao Escritório de Assuntos Internacionais (OIA, na sigla em inglês) diretamente por Dallagnol, sem passar pela Secretaria Cooperação Internacional da PGR nem pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), do Ministério da Justiça, autoridade central responsável, de acordo com um tratado bilateral. O diálogo dá a entender que um mandado de prisão ainda estava por ser decretado pelo então juiz Sergio Moro.
“Passa o nome e os dados que vamos atrás. Fizemos isso com o advogado de Cerveró”, responde Aras. “Nosso parceiro preferencial para monitorar pessoas tem sido o DHS, mas podemos trabalhar com o FBI também. Quanto antes tivermos os dados, melhor”, explica Aras, referindo-se ao Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS, na sigla em inglês). Aras prossegue explicando que o pedido de extradição teria que passar pelo DEEST, o Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça, além do Ministério de Relações Exteriores, “um parceiro importante”.
“Não é bom tentar evitar o caminho da autoridade central, já que, como vc sabe, isso ainda é requisito de validade e pode pôr em risco medidas de cooperação no futuro e a “política externa” da PGR neste campo”, explica Vladimir.
“O que podemos fazer agora é ajustar com o FBI e com o DHS para localizar o alvo e esperar a ordem de prisão, que passará pelo DEEST. Podemos mandar simultaneamente aos americanos”, ele prossegue.
Em resposta, Deltan é direto. “Obrigado Vlad por todas as ponderações. Conversamos aqui e entendemos que não vale o risco de passar pelo executivo, nesse caso concreto. Registra pros seus anais caso um dia vá brigar pela função de autoridade central rs”, escreveu, deixando no ar a sugestão para que Aras se ocupasse do assunto se um dia comandasse o MPF ou o Ministério da Justiça. “E registra que a própria PF foi a primeira a dizer que não confia e preferia não fazer rs”.
Vladimir insiste: “Já tivemos casos difíceis, que foram conduzidos com êxito”.
“Obrigado, Vlad, mas entendemos com a PF que neste caso não é conveniente passar algo pelo executivo”.
Vladimir responde que “A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta. O tratado tem força de lei federal ordinária e atribui ao MJ a intermediação”.
Procurada pela reportagem, a Força-Tarefa da Lava Jato reiterou, através de nota, que “além dos pedidos formais por meio dos canais oficiais, é altamente recomendável que as autoridades mantenham contatos diretos. A cooperação inclui, antes da transmissão de um pedido de cooperação, manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias, com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações a serem pedidas e recebidas”. Leia a resposta completa no final desta reportagem.
Para a professora de direito penal e econômico na Fundação Getulio Vargas, Heloísa Estellita, o episódio é “lamentável”. “Não temos notícia de como o procurador procedeu e se procedeu a alguma medida. Mas não deixa de ser lamentável que, mesmo corretamente orientado por colega especialista em cooperação internacional e zeloso pela legalidade, o procurador tenha manifestado que, em tese, preferiria outro caminho”, avalia. “Como o procurador especialista alerta, a hipótese de circundar a autoridade competente poderia não só causar problemas institucionais no Brasil, como gerar descrédito para as instituições brasileiras perante autoridades estrangeiras”.
Odebrecht: “O FBI já tem conhecimento total das investigações”
Naquele mesmo ano, alguns meses depois, a relação com a polícia americana voltaria a ser tema de debate entre os procuradores, desta vez pelo Chat Acordo ODE, onde discutiam o contrato de leniência com a construtora Odebrecht.
O tema da conversa, iniciada às 15:29:40 do dia 31 de agosto de 2016, era o sistema de informática My Web Day, que, assim como o Drousys, era usado pelo Setor de Operações Estruturadas, um departamento da Odebrecht que geria os pagamentos de propinas a políticos de vários países. Os membros da Lava Jato pediram informalmente ajuda ao FBI para quebrar as senhas de ambos os sistemas. O pedido foi feito em agosto de 2016, quase um ano antes da Lava Jato receber oficialmente os arquivos do Mywebday e Drousys a partir da assinatura do acordo de leniência com a Odebrecht, o que ocorreu em agosto de 2017, segundo reportagem de O Globo.
Naquele dia o procurador Paulo Roberto Galvão explicou que pediu auxílio do FBI para “quebrar” ou “indicar um hacker” para acessar o sistema My Web Day. Em resposta, o promotor Sérgio Bruno, que coordenava a Lava Jato em Brasília, afirma que o então Procurador Geral da República Rodrigo Janot chegou a ter uma reunião na embaixada americana para pedir ajuda com os sistemas criptografados da Odebrecht.
“O canal com o FBI é com certeza muito mais direto do que o canal da embaixada. O FBI tb já tem conhecimento total das investigações, enquanto a embaixada não teria”, informa Paulo Roberto. “De minha parte acho útil manter os dois canais”.
Depois, ele explica: “A nossa foi sim com o adido, porém o que fica em SP. O mesmo que acompanha o caso LJ”.
As trocas entre FBI e a Lava Jato em relação ao sistema My Web Day continuaram nos meses seguintes, mas parecem ter sido infrutíferas. Em outubro de 2016, Paulo Roberto Galvão compartilhou no chat “Acordo Ode” uma resposta em inglês de David Williams, adido do FBI na embaixada americana, sobre as possibilidades indicadas pelos experts em criptologia do FBI.
A comunicação demonstra que o assunto já fora tratado, pessoalmente, com o procurador Carlos Bruno Ferreira, da Secretaria de Cooperação Internacional da PGR. “Se não me engano o assunto de baixo é o mesmo que o Carlos Bruno explicou para mim recentemente na despedida do Adido Frank Dick na embaixada do Reino Unido (certo Carlos?)”, escreve, em português fluente, prometendo consultar os “cyber experts” do FBI. O problema é que o MywebDay usava uma poderosa criptografia que só podia ser descriptografada usando 3 componentes. E a Odebrecht dizia que tinha perdido dois deles, tendo apenas a senha. A criptografia usava o programa Truecrypt.
“Eu acho que em resumo o que eles estão falando é que sem os arquivos-chave, é impossível no cenário da Odebrecht destravar o volume do TrueCrypt apenas com uma senha”, escreveu como resposta David Williams. “Eles podem fazer uma análise forense nas imagens que têm os dados do TrueCrypt, e fazer uma tentativa para localizar os outros arquivos-chave. Se essa análise é algo que você gostaria de receber assistência, avise-nos e podemos ver se é algo que o FBI pode tentar”.
“Caros, na Suíça aparentemente o pessoal da Odebrecht disse q teria condições de abrir o sistema. Vamos entender melhor isso”, encerra Paulo.
No final de 2016, a Odebrecht, junto com sua subsidiária Braskem – à época uma joint-venture com a Petrobras – fez um acordo com o DOJ pelo qual ambas concordaram em pagar uma indenização de no mínimo US$ 3,2 bilhões aos EUA, Suíça e Brasil – total depois reduzido para US$ 2,6 bilhões – por práticas de corrupção ocorridas fora dos EUA.
Procurada pela reportagem, a Lava Jato afirmou, através de nota, que “os dados do sistema Drousys, entregues ao MPF no bojo do acordo de leniência firmado pelo Grupo Odebrecht, já foram objeto de perícia submetida à avaliação do Poder Judiciário brasileiro e auxiliaram no fornecimento de provas a diversas investigações e acusações criminais”. A resposta completa está no final da reportagem.
Porém, apenas em agosto de 2017 cinco discos rígidos com cópia de dados do software MyWebday foram entregues oficialmente aos procuradores da Lava Jato como parte do acordo, segundo reportagem de O Globo. Os arquivos para descriptografá-los continuavam desaparecidos – e mais uma vez a Lava Jato precisou da ajuda dos americanos.
Discutindo a reportagem do Globo, o procurador Roberson Pozzobon, colega de Dallagnol em Curitiba que chegou a negociar a abertura de uma empresa de palestras em sociedade com ele, reclamou: “Da forma como ele colocou, parece que não nos empenhamos (e ainda estamos nos empenhando) para buscar acessar essas informações (quando os dispositivos foram enviados até o FBI para ver se seria possível acessar sem as senhas)”, escreveu ele no chat “Filhos do Januario 2 – SAIR” em 6 de fevereiro de 2018.
A colaboração com o FBI nas investigações em relação à Odebrecht levou a um dos maiores acordos assinados até então pelo DOJ com uma empresa internacional, no valor de US$ 2,6 bilhões de multa.
Como a Odebrecht não é uma empresa de capital aberto e portanto não tem suas ações vendidas na bolsa nos Estados Unidos – como era o caso da Braskem – o acordo descreve algumas situações que estariam sob a jurisdição americana.
Por exemplo, a Odebrecht teria usado contas em bancos de Nova York para transferir dinheiro para contas Offshore em Belize e nas Ilhas Virgens Britânicas que, afinal, seria “em parte” usada para o pagamento de propina em países latino-americanos. O DOJ vai além. “A Odebrecht, os seus empregados e agentes, tomaram diversos passos enquanto nos Estados Unidos para aprofundar o esquema. Por exemplo, em 2014 e 2015, enquanto estavam em Miami, na Flórida, dois funcionários da Odebrecht tiveram condutas relativas a certos projetos dentro do esquema, incluindo reuniões com outros co-conspiradores para planejar ações a serem tomadas em conexão com a Divisão de Operações Estruturadas, a movimentação de produtos de crimes, e outras condutas criminosas”.
Após ser alvo da Lava-Jato e de ter assinado acordo nos EUA, a Odebrecht passou a ser investigada em diversos países onde mantinha contratos na América Latina. Em junho de 2019, a empresa pediu recuperação judicial.
Segundo o jornal Mimai Herald, foi justamente a crença de que o dinheiro lavado pelos membros do regime chavista – incluindo a propina da Odebrecht – acabou no mercado imobiliário do sul da Flórida que levou à criação no ano passado de um Esquadrão de Corrupção Internacional em Miami. O esquadrão é subjugado à Unidade de Investigação liderado por Leslie Backschies, a agente que fala português fluentemente e apoiou as 10 medidas contra a corrupção de Deltan e companhia, segundo as mensagens da Vaza Jato.
“Nós vimos presidentes derrubados no Brasil. Esses são os resultados de casos como esses”
A expressão usada por Leslie Rodrigues Backschies para descrever o impacto político das investigações do FBI sobre corrupção estrangeira é que são “politicamente sensíveis”.
“Esses casos são muito sensíveis politicamente, não somente nos Estados Unidos mas no exterior,” explicou a agente especial em entrevista à Associated Press. “Quando você está olhando para oficiais estrangeiros em outros governos — quer dizer, veja, na Malásia, o presidente não foi reeleito. Nós vimos presidentes derrubados no Brasil. Esses são os resultados de casos como esses. Se você está olhando para membros do alto escalão de governos, há muitas sensibilidades.”
A agente especial Leslie R. Backschies participou do evento ICC meet the enforcers em fevereiro de 2018
É por conta de tamanhas “sensibilidades” que, diferentemente de outros casos criminais, todos os casos de FCPA são dirigidos pela unidade especializada do Departamento de Justiça em Washington – mesmo que tenham se iniciado em um distrito distante da capital. O DOJ é chefiado pelo Procurador-Geral dos Estados Unidos, uma espécie de Ministro da Justiça, nomeado diretamente pelo presidente.
Segundo a reportagem da Associated Press, os supervisores do FBI se encontram com advogados do Departamento de Justiça a cada 15 dias para avaliar potenciais investigações e possíveis consequências políticas e econ.
Corrupção internacional vira prioridade
A mudança na carreira de Leslie acompanhou uma mudança de foco do Departamento de Justiça e do FBI na última década. A partir de uma percepção de que a lavagem de dinheiro ajudava o financiamento do terrorismo, os agentes americanos passaram a se dedicar cada vez mais a casos de corrupção transnacional e lavagem de dinheiro usando a legislação FCPA, que tem jurisdição ampliada para o mundo todo. Hoje, a maioria dos casos de FCPA não tem nada a ver com terrorismo.
A mudança trouxe dividendos para o DOJ e possibilitou uma renovada parceria com polícias e Ministérios Públicos de todo o continente americano. E se solidificou. Em 2017, pela primeira vez a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos – já sob o governo de Donald Trump – incluiu o “combate à corrupção estrangeira” como prioridade para a segurança interna dos cidadãos americanos.
Antes dele, a estratégia definida por Barack Obama em 2015 já mencionava a corrupção internacional como ponto de atenção – mas ela não tinha uma lista de “ações prioritárias”.
Em março de 2015, o FBI abriu três esquadrões dedicados à corrupção internacional em Nova York, Los Angeles e Washington, triplicando o número de agentes dedicados a investigar violações da FCPA e “crimes de cleptocracia” – foram de 10 agentes para 30. Até o final de 2017 os recursos para o FBI investigar corrupção transnacional aumentaram em 300%, segundo o seu ex-chefe “Ren” McEachern.
Diálogos mostram que sob o comando de Deltan Dallagnol, o FBI teve total acesso às investigações sobre a Odebrecht
O anúncio oficial explicava o foco na investigação de “cleptocracias”, “oficiais estrangeiros que roubam dos tesouros dos seus governos às custas dos seus cidadãos” e afirmava ainda que os agentes do FBI iriam contar com “operações secretas, informantes e fontes”, além de “parceria com nossas contrapartes internacionais – facilitada pela nossa rede de adidos legais situados estrategicamente ao redor do mundo”.
A explicação de Leslie para o foco do FBI na corrupção internacional – e por que investigar empresas que cometeram corrupção fora dos Estados Unidos ajuda a melhorar a segurança dos cidadãos americanos – é rocambolesca. “Queremos que se cumpra a lei. Se a lei não é cumprida, você terá certas sociedades nas quais eles [os cidadãos] sentem que os governos deles são tão corruptos, que irão buscar outros elementos que são considerados fundamentais, que eles vêem como limpos ou algo contra o regime corrupto, e isso se torna uma ameaça para a segurança nacional [dos Estados Unidos]”.
“Uma coisa quando eu falo com empresas, eu digo ‘Quando você paga um suborno, você sabe onde o dinheiro está indo? Sua propina está indo para financiar terrorismo?’”, completa, sem explicar como isso ocorre.
Em julho de 2019, Leslie Backschies participou de mais um evento para discutir corrupção internacional, dessa vez em Washington, DC, e desvendou mais uma atuação “sensível” da polícia americana no exterior. Segundo o site Market Insight a agente especial afirmou que o FBI tem a estratégia de valer-se de membros de governos de outros países para buscar investigar casos de FCPA.
Ela afirmou que, quando há uma mudança de regime, uma nova administração às vezes pede ajuda para investigar a corrupção no governo anterior. E quando um novo governo chega a um país, pode haver servidores restantes do governo anterior que querem relatar a corrupção.
A atuação do FBI em casos fora do seu território tem gerado diversas críticas entre juristas, que apontam que os Estados Unidos se comporta como “polícia do mundo”.
“Eu tenho alguns clientes que quase nem tocaram nos Estados Unidos, e eles perguntam: até onde isso vai se estender? E, você sabe, até certo ponto, qual o interesse dos EUA?” questiona o advogado Adam Kauffman, um ex-procurador do distrito de Nova York que trabalhou com Sergio Moro na investigação sobre o caso Banestado, quando ele era juiz federal.
Ele deu uma entrevista à Agência Pública em Nova York em junho de 2019, antes do vazamento dos diálogos da Força-Tarefa. “Em muitos casos, quando o governo [americano] processa esses casos de corrupção, as pessoas admitem a culpa porque estão com medo, e conseguem um acordo bom, então o governo garante jurisdição sobre coisas que são muito tênues. Mas ninguém questiona isso, então se torna mais e mais comum e a jurisdição vai para mais e mais longe”.
“Porque jurisdição”, reflete Adam, “é como gravidez. Ou você tem ou você não tem. Você não pode ter um pouquinho de jurisdição e você não pode estar um pouquinho grávida. Onde está o limite?”.
Respostas da Lava Jato
Procurada pela Pública, a força-tarefa da Lava Jato respondeu por email. Leia a íntegra das respostas a seguir:
Um dos diálogos vazados ao The Intercept Brasil atesta que em 31 de agosto de 2016 o FBI tinha “total conhecimento” das investigações feitas pela Lava Jato sobre a empresa Odebrecht. Como funcionava essa atuação do FBI em parceria com os investigadores da Lava Jato? Como se dava essa transmissão de informações?
Não se trata de atuação em parceria, mas de cooperação entre autoridades responsáveis pela persecução criminal em seus países, conforme determinam diversos tratados internacionais de que o Brasil é signatário. O intercâmbio de informações entre países segue igualmente normas internacionais e também leis brasileiras. Além dos pedidos formais por meio dos canais oficiais, é altamente recomendável que as autoridades mantenham contatos diretos. A cooperação inclui, antes da transmissão de um pedido de cooperação, manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias, com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações a serem pedidas e recebidas.
A parceria com o FBI, que incluiu a busca de quebrar a criptografia do sistema Drousys, foi criticada por alguns advogados como um possível risco à soberania nacional por poder ser usada contra uma empresa brasileira por um governo estrangeiro. Qual é a posição da Lava Jato sobre isso?
Não recebemos da jornalista dados sobre a “busca de quebrar a criptografia do sistema Drousys”, nem sobre “foi criticada por alguns advogados como um possível risco à soberania nacional por poder ser usada contra uma empresa brasileira por um governo estrangeiro”. De todo modo, os dados do sistema Drousys, entregues ao MPF no bojo do acordo de leniência firmado pelo Grupo Odebrecht, já foram objeto de perícia submetida à avaliação do Poder Judiciário brasileiro e auxiliaram no fornecimento de provas a diversas investigações e acusações criminais.
Os diálogos demonstram ainda que em pelo menos uma ocasião o chefe da Lava Jato manteve contatos diretor com o DOJ em temas de extradição e cooperação internacional – uma atribuição do DRCI /MJ – e expressou a decisão de evitar passar pelo Executivo, no caso o Ministério da Justiça, durante o governo de Dilma Rousseff. Por que a Lava Jato preferia evitar a Autoridade Central e se comunicar diretamente com o Departamento de Justiça Americano? Esse tipo de postura não poderia prejudicar a imagem internacional das instituições brasileiras perante autoridades estrangeiras?
Conforme respondido no item “1”, além dos pedidos formais por meio dos canais oficiais, é altamente recomendável que as autoridades mantenham contatos diretos. A cooperação inclui, antes da transmissão de um pedido de cooperação, manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias, com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações a serem pedidas e recebidas.
A Lava Jato continua trocando informações e colaborando com o FBI em solo brasileiro? Existem ainda empresas brasileiras que são investigadas pelo FBI com base na legislação FCPA?
A força-tarefa da Lava Jato no Paraná não comenta sobre eventuais investigações em curso.
Créditos de imagens
Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública - Foto: Site Piloto Policial
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