“Existem forças autodestrutivas em jogo, tanto nos indivíduos quanto nas coletividades, ignaras de serem suicidas”. Entrevista com Edgar Morin
17 Abril 2020
Atento, sorridente e disponível, Edgar Morin olha direto dentro dos olhos quando ele fala e enquanto te escuta. O sociólogo e filósofo francês, nascido em 1921, atravessou por um século de história e contou sua história em memórias de recente publicação. Em seu gabinete no Instituto Botânico de Montpellier, responde a algumas perguntas em um dia em fevereiro, no início da pandemia de coronavírus. É assim que o pai do "pensamento complexo" lê o presente.
A entrevista com Edgar Moriné de Alice Scialoja, publicada por Avvenire, 15-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Você acha que o coronavírus poderia marcar para a humanidade uma tomada de consciência da interdependência e da comunidade dos destinos de todos os seres humanos?
Precisamos de um humanismo regenerado, que faz sua busca nas fontes da ética: a solidariedade e responsabilidade, presentes em toda sociedade humana – Edgar Morin
Vivemos uma crise tripla: a crisebiológica de uma pandemia que ameaça indiscriminadamente as nossas vidas, aquela econômica nascida das medidas restritivas e a de civilização, com a abrupta transição de uma civilização da mobilidade para a obrigação de imobilidade. Uma crise múltipla que deveria provocar uma crise do pensamento político e do próprio pensamento. Talvez uma crise existencial saudável. Precisamos de um humanismo regenerado, que faz sua busca nas fontes da ética: a solidariedade e responsabilidade, presentes em toda sociedade humana. Essencialmente um humanismo planetário.
Você escreveu que a história, especialmente a história humana, é imprevisível e que o futuro da humanidade será igualmente inesperado. Pode-se, no entanto, falar de alguma lição da história?
A primeira lição da história é que não aprendemos lições da história, que somos cegos para o que ela nos ensinou. Por exemplo, que ela comporta um certo número de determinismos, como o desenvolvimento das forças produtivas ou os conflitos de classe indicados por Marx, mas também uma dimensão shakespeariana de ruído e fúria. Não ocorreu de repente aos nossos ancestrais caçadores e coletores que eles se tornariam camponeses, assim como os impérios da antiguidade não pensavam de forma alguma que um dia poderiam ruir, nem o Egito, nem os sumérios, nem Roma. Existe uma grande parte do desconhecido e inesperado: essa é na minha opinião, uma das lições.
A primeira lição da história é que não aprendemos lições da história, que somos cegos para o que ela nos ensinou – Edgar Morin
O movimento de Hitler na década de 1920 parecia condenado à esterilidade. Mas a conjunção entre a crise do dia 29, uma Alemanha humilhada pelo Tratado de Versalhes, a divisão entre socialistas e comunistas, os poderes financeiros que pensavam em manipular Hitler sem saber que ele os manipularia, fez o impensável acontecer: que o país mais culto da Europa afundasse na barbárie.
A história, portanto, ensina-nos a ser vigilantes e a pensar que os períodos que parecem progressistas podem ser seguidos de regressão e barbárie, e que nem mesmo essa é eterna. Antes da guerra, a dominação nazista na Europa parecia geral e o que fez as coisas mudarem? O Duce. Porque ele quis atacar a Grécia, mas foi parado pelo pequeno exército grego, então pediu ajuda a Hitler, que teve que adiar o ataque à URSS por um mês, previsto para maio de 1941, porque teve que combater a Resistência sérvia antes de conseguir a plantar a bandeira da suástica na Acrópole. Assim, chegando aos portões de Moscou, o exército alemão ficou congelado por um inverno precoce. Mas se tivesse atacado em maio, teria tomado Moscou e o destino teria mudado.
Isso significa que a história é governada pelo acaso?
A história comporta um certo número de determinismos, como o desenvolvimento das forças produtivas ou os conflitos de classe indicados por Marx, mas também uma dimensão shakespeariana de ruído e fúria – Edgar Morin
O acaso costuma intervir, mas é a complexidade dos fatores que operam na história que mais a modificam, eventos que fermentam e trabalham sobre a realidade. Gorbachev, por exemplo, quem esperava isso? Ou o rei anterior da Espanha, que havia sido nutrido pelo franquismo ... Brotam conversões psicológicas, se assim podemos dizer, espírito subterrâneo que inverte as partes: a história também é isso.
Você vê um novo desvio no presente e considera preocupante o recrudescimento dos nacionalismos?
Estamos em uma época regressiva. A regressão se manifesta com a crise das democracias que, em muitos lugares, inclusive na Europa, dá lugar a regimes semi ditatoriais, na Turquia, Hungria, Rússia, um pouco também na Polônia. Uma tendência quase universal, à qual se soma o domínio de forças econômicas gigantescas, que nas atuais condições do neoliberalismo pesam sobre os povos que tentam se levantar, mas fracassam. Essas revoltas se esvaziam ou são esmagadas porque não há força para guiá-las, uma voz capaz de dar sentido ao futuro. Fatores negativos estão predominando. Ocasionalmente, um fator agradável e inesperado interfere, como a eleição do papa Francisco.
Você gosta do Papa Francisco?
Sim, claro, embora eu seja um agnóstico.
Você argumenta que a incapacidade de gerir a complexidade nos leva à autodestruição. Temos possibilidade de nos salvar?
Estamos em uma época regressiva. (...) Fatores negativos estão predominando. Ocasionalmente, um fator agradável e inesperado interfere, como a eleição do papa Francisco – Edgar Morin
Existem forças autodestrutivas em jogo, tanto nos indivíduos quanto nas coletividades, ignaras de serem suicidas. Até que ponto irão esses danos e quando ocorrerá uma reação, não se sabe. Há 50 anos estou entre os que emitem o alerta. Mas os progressos da consciência são lentos. Já é tarde. Eu não sei. Eu acho que pode haver devastação, mas não vejo a destruição da espécie humana. A história também ensina como, em certo ponto, tudo parece entrar em colapso como, por exemplo, a romanidade; depois de um processo multissecular algo novo e revolucionário surge. Estamos em um mundo incerto e podemos imaginar um futuro em que forças catastróficas intervenham, mas a probabilidade nunca é certeza.
Em um livro com Mauro Ceruti, escreve que a ideia da União Europeia é filha do improvável porque é imaginada por homens em confinamento durante a guerra. O improvável como motor de otimismo?
Eu acredito nisso. Mas não sei qual improvável que possa aparecer hoje. Na história humana, no entanto, os dois inimigos irreconciliáveis, mas inseparáveis, que são Eros e Thanatos continuarão se enfrentando, e Thanatos não será capaz de destruir Eros ou Eros eliminar Thanatos. Cada um por sua vez assumirá o controle. Hoje os mais fortes são Polemos e Thanatos, mas não há eternidade na história.
Alexander Langer dizia que a revolução ecológica poderá se afirmar na medida em que for desejável; você concorda?
Existem forças autodestrutivas em jogo, tanto nos indivíduos quanto nas coletividades, ignaras de serem suicidas. Até que ponto irão esses danos e quando ocorrerá uma reação, não se sabe – Edgar Morin
Existem os ecologistas, mas a ciência ecológica não é ensinada em lugar algum. É uma ciência multidisciplinar e, como tal, não é aceita em nossas universidades. A segunda lacuna é que, embora se saiba a partir de Darwin que somos o resultado da evolução biológica, toda a nossa cultura continua a separar o orgânico do humano. Criamos uma fratura epistemológica. Catástrofes, como Chernobyl, causam agitação e são esquecidas, assim como os novos furacões. Outras culturas têm um senso de incorporação do humano na natureza muito superior ao nosso.
Despertou algo na juventude de muitos países e isso é realmente positivo.
A economia está avançando de modo completamente incontrolável. Como poderia ser orientada e qual controle seria desejável?
O único controle desejável seria o exercido pelos órgãos econômicos mundiais, que existem, mas estão a serviço da corrente dominante. Seria necessária uma consciência planetária da comunidade dos destinos humanos. Hoje, pelo contrário, a angústia faz com que nos encerremos sobre a identidade nacional, étnica, sobre o nacionalismo. Em vez de uma abertura da consciência, vital, há um fechamento mortal. Não podemos esconder de nós mesmos essa regressão, melhor vê-la e formar ilhotas de resistência. Criar oásis de pensamento livre, fraternidade, solidariedade, ilhotas de resistência que defendam valores universais e humanistas, e pensar que um dia eles possam se tornar uma vanguarda. Isso já aconteceu muitas vezes na história, acontecerá novamente.
Você acredita na ideia de progresso?
Não. Existem progressos possíveis, progressos incertos e todo progresso que não se regenerar degenera. Tudo pode regredir.
Na aula sobre o texto “O que é a Ilustração” são tantos os absurdos ditos por Olavo de Carvalho sobre Kant, que chega a ser difícil comentar. Seu objetivo: atacar a democracia, a liberdade e a diversidade.
Dimitrius Dantas, do jornal O Globo, convidou a mim e a dois colegas, Maria de Lourdes Borges, da UFSC, e Maurício Keinert, da USP, para assistirmos uma das aulas de Olavo de Carvalho e darmos nossa opinião. A matéria, publicada no dia 10 de Fevereiro, ficou interessante e gerou alguma polêmica[1], chegando até mesmo a figurar entre os trend topics do Twitter. Como toda matéria de jornal, ficou muito por ser dito. Gostaria de retomar então alguns pontos que ficaram fora do texto publicado, justamente para tentar mostrar que, por detrás de disputas filosóficas, estão em jogo questões muito mais fundamentais.
Conta-se por aí que ao menos duas vezes a filosofia de Kant deu azo a discussões tão acaloradas que acabaram em atos de violência, em duelos para decidir a questão disputada. Mais interessante do que saber, porém, se a interpretação A ou B é a correta, é saber porque essa questão ocupa tanto espaço. Não que Olavo de Carvalho ofereça um interpretação. Não. O que ele fornece é uma simples e pura falsificação, afirmações absurdas sobre o filósofo que não encontram nenhuma sustentação. Nenhuma, zero. Mas ele oferece isso a pessoas que querem saber, ou seja, milhares de jovens que chegaram até ele e que foram por ele acolhidos. Olavo de Carvalho existe porque existe uma demanda legítima, da parte dos jovens, por orientação, por uma explicação sobre o que está acontecendo. Se ele faz isso, e se atinge o público enorme que atinge, é porque há espaço para isso. Nós, que trabalhamos seriamente com filosofia, precisamos reconhecer isso: deixamos o espaço aberto para que uma figura sem qualquer escrúpulo ou honestidade o ocupasse.
É claro que a Universidade não pode ocupar todos os espaços. Isso não é apenas impossível, é indesejável. É fundamental que haja vida intelectual fora da Universidade. No caso da filosofia principalmente. Quando alguém procura um curso de filosofia, no mais das vezes está procurando algum tipo de orientação, um modo de lidar com suas angustias, suas fobias, suas incertezas, de compreender processos políticos, enfim, de se orientar no mundo e na vida. Esta é uma dimensão que nós, da Universidade, como que perdemos, e acabamos reduzindo a filosofia a questões técnicas, internas ao pensamento dos diversos filósofos que compõem os nossos cursos. Mais ainda. Os estudantes querem respostas e nós, quase que de modo perverso, multiplicamos as perguntas, em alguns casos de modo insuportável para certos estudantes.
Na verdade estamos lidando aqui com dois conceitos de filosofia: filosofia como um certo saber, como uma visão abrangente do mundo, que nos oferece uma série de explicações para questões que consideramos relevantes, e filosofia como a compreensão dessas mesmas questões, de procurar saber de onde elas veem, se são questões necessárias, questões que não podemos evitar. Questões filosóficas são poucas. Respostas, bem, são muitas. O modo, porém, como o filósofo constrói a sua reposta depende do modo como ele coloca a questão, como ele vê a questão, depende muitas vezes de questões que considera mal resolvidas por outro filósofos. Em nosso trabalho técnico, tratamos disso muito bem. Apresentamos os diversos sistemas filosóficos – e também os filósofos não sistemáticos, os anti-sistemáticos, etc; analisamos os diversos argumentos, as milhares de passagens difíceis, nos menores detalhes, tomando sempre conhecimento do que melhor se publica sobre o assunto; é sempre um cartesiano apresentando Descartes, um kantiano apresentando Kant, um aristotélico apresentando Aristóteles, e por aí vai. Ou seja, damos excelentes cursos de história da filosofia. A questão é então inevitável: o aluno entra no curso de filosofia e tudo o que ele vê é história da filosofia?
Kant dividia a filosofia em duas partes. Uma parte crítica, na qual se avaliam as diversas figuras da racionalidade, julga-se se tais esforços se encontravam bem fundados, se não se afirmava além do que se poderia ter afirmado; e uma parte dogmática, posterior à crítica, na qual se constrói o sistema, ou a visão (filosófica) do mundo. A primeira parte, a parte da crítica, implica conhecer a história da razão, ou seja, no limite a história da filosofia. Não é gratuito, portanto, que a história da filosofia tenha sua matriz justamente em Kant. Mas não dá simplesmente para afirmar que história da filosofia e filosofia são o mesmo. Na chamada Lógica de Kant há uma passagem que muitas vezes é utilizada para ressaltar essa distinção. Ela é no mais das vezes compreendida como querendo dizer o seguinte: não se deve ensinar filosofia (história da filosofia), e sim se deve ensinar a filosofar. Mas quando vamos para o texto, lemos que não se ensina filosofia porque não há filosofia a ser aprendida. Kant afirma o seguinte: “Não se pode aprender filosofia já pela simples razão que ela ainda não está dada. E mesmo na suposição de que realmente existisse uma, ninguém que a aprendesse poderia se dizer filósofo; pois o conhecimento que teria dela seria sempre um conhecimento tão-somente histórico-subjetivo.”[2]
Para Kant, então, a Filosofia não está dada, ou seja, ela é uma ideia, uma ideia de ciência (como conhecimento racional e rigoroso), e não uma ciência. Cabe insistir um pouco mais nesse ponto. Para Olavo de Carvalho, ao contrário, a Filosofia está dadaem um conjunto de dogmas que ele afirma ter pensado e que ele se põe a ensinar. Chega a ser patético. Mas enfim, prosseguindo. Não é porque para Kant a filosofia não está dada que somos condenados à inação e à morte do pensamento. Muito pelo contrário. Pensar, é uma atividade, fazer filosofia, filosofar é justamente essa atividade do pensamento. Assim, filosofar e pensar por si mesmo são a mesma atividade. Como ele afirma um pouco acima no mesmo texto da Lógica, se queremos nos dedicar a essa atividade, teremos de “olhar mais para o métodode nosso uso da razão do que para as proposições mesmas a que chegamos por intermédio dele”. E olho para o método de nosso uso da razão quando vejo como Leibniz pensa, como Locke pensa, como Aristóteles pensa, como Marx pensa, como Giannotti pensa. Pensar por si mesmo, portanto, não é pensar sozinho, é pensar com o outro, e muitas vezes contra o outro. Não é aceitar, de modo acrítico, o que o outro pensa. E é isso que Olavo não está disposto a aceitar.
A diferença entre filosofia e religião nem sempre é clara, e pode mesmo variar de uma compreensão a outra do que seja filosofia. Há também uma distinção entre religião, como o conjunto de valores e crenças de uma certa comunidade que a liga ao transcendente, e igreja, como a instituição que cuida desses valores. É importante também distinguirmos entre igreja e seita. O mínimo que podemos dizer é que Olavo de Carvalho criou uma seita. Ele se apropria de algumas ideias caras a pensadores cristãos e pretende ter feito com elas a sua filosofia. Como disse minha colega e amiga Maria de Lourdes, um verdadeiro “liquidificador delirante”. Como liquidificador é coisa séria, uma arma poderosa, precisamos ter cuidado. Pois bem. Olavinho me acusa de ter deturpado seu pensamento, ao não distinguir entre a comunidade de amigos-discípulos que ele cria e a comunidade tal como ele afirma criar e que estaria baseada no conceito de amizade tal como pensado por Tomás de Aquino. Conversa fiada. Que comunidade há entre uma figura patética que fica defronte de um computador dizendo absurdo atrás de absurdo e os pagantes de seus cursos? Comunidade? A comunidade de Olavinho é apenas isso, um espaço que ele controla de modo absoluto, na qual entra quem paga e fica quem ele deixa. Se discordou, está fora. Não há espaço para verdadeira discussão. Se todos o tratam como mestre, é porque ele se coloca nessa posição, como se sábio fosse. De sábio, porém, não tem nada. É, isso sim, para usar a distinção de Giannotti, um grande de um sabido!
Um sabido, porém, que tem feito um estrago enorme, em um ambiente já deficiente de discussão de alto nível e democrática. Ele é um vírus que infecta a esfera pública e que encontra seu lugar de reprodução no ambiente putrefato de seu curso on-line. Compreender Kant ou não é irrelevante para a nossa democracia. Agora, defender uma visão de mundo aberta, livre, que vive do pensamento honesto, que aposta na razão e na liberdade, ou defender uma visão de mundo obscurantista, que recusa o diálogo porque tem na ofensa e na violência os únicos argumentos, que defende valores retrógrados, não, não é irrelevante para a democracia. Ao atacar Kant, o que Olavo ataca são os valores da modernidade, modernidade que não é nem um pouco fácil e sem problemas, mas que tem um compromisso inquestionável com a democracia. E nesse projeto Kant é o autor que não vacila! Como muitos do século XVIII (não todos, vejam bem bem) Kant tinha visão estreita sobre certos temas, por exemplo com relação as mulheres, sobre as quais diz coisas inaceitáveis; sua posição com relação ao problema das raças, que então começava a se colocar de modo muito forte, não é nem um pouco isento de ambiguidades. Então não se trata de defender Kant cegamente, nenhum autor está livre da crítica, mas de defender a democracia, ou melhor, os princípios que a dão sustentação e que se encontram formulados por Kant. É a ela, democracia, que Olavo visa, ao atacar Kant. É a liberdade e a pluralidade, para começarmos.
Na aula sobre o texto “O que é a Ilustração” são tantos os absurdos, que chega a ser difícil comentar. Mas vamos lá. O texto de Kant é um texto de intervenção no debate público. O ano de publicação é 1784 e o que estava em questão era um brutal esforço de unificação da legislação do Império da Prússia, que ocupava um grande território, com culturas e costumes relativamente distintos, e portanto com legislações distintas, em especial a legislação tributária, sob forte controle dos poderes locais. O que serve de pretexto à intervenção de Kant foi uma publicação anterior, no mesmo periódico, em que se acusava a Ilustração de ir longe demais, de atacar a moralidade, ao pretender que o casamento poderia ser considerado um vínculo civil apenas, sem a necessidade da sua consagração pela Igreja. A Prússia era território da Igreja Reformada. Como dois jovens de fé católica poderia se casar? Teria de se casar em uma Igreja Protestante, contrariando a sua fé? E jovens de origem e religião judaicas? O Estado Prussiano reconheceria a autoridade religiosa de catolicismo e judaísmo? E jovens que não tivessem religião alguma? Jovens sem religião, provavelmente pensava o autor contra quem Kant se opõe, são depravados, e depravados não devem casar. Pois que moral passarão para seus filhos?
Olavo de Carvalho ignora completamente o contexto da intervenção de Kant. Seja o pretexto, a questão do casamento, seja a questão maior, a unificação da legislação e a relação entre igreja e Estado. Ignora e já começa dizendo besteiras. Kant começa o texto com uma definição muito preliminar do que é a Ilustração: é a saída do homem da menoridade da qual ele mesmo é culpado. O caminho para tal saída está em ter coragem de pensar por si mesmo. A primeira batatada está em dizer que, para Kant, pensar por si mesmo é pensar o que a gente bem entende, quando não é nada disso. Pensar por si mesmo envolve uma relação livre entre o indivíduo e a comunidade, na qual a única autoridade é a autoridade da razão, do pensamento. Pensar não é, portanto, uma atividade que se faça de modo isolado. Porque se eu quero pensar de modo consistente, preciso comparar o meu pensamento com o pensamento dos demais. E para isso precisamos ser livres. Vejam que Kant logo se apressa em afirmar que a Ilustração talvez seja, para o indivíduo, impossível. Mas que talvez um povo possa pensar por si mesmo, isto é, chegar a um pensamento ilustrado, chegar ao ponto de ser capaz de decidir quanto ao seu destino, ser senhor de si mesmo, soberano. Então, por trás do lema sapere aude, tem coragem de fazer uso do teu entendimento, o que está em questão é uma figura da modernidade política: o exercício da soberania popular em regime de democracia representativa. Mas isso não interessa a Olavo. Interessa a ele insistir em uma suposta contradição, presente no que ele, Olavo, acredita que Kant está dizendo. Ora, quando a gente encontra uma contradição em um grande filósofo, o mínimo que se espera de nós é que leiamos o texto algumas vezes, porque muito provavelmente a gente é que não entendeu nada. Com Olavo é exatamente isso que se passa, ou não, talvez seja proposital.
É proposital, porque a ele não interessa a liberdade de pensamento. A ele interessa que seus seguidores repitam o que ouvem nos vídeos mal editados. Daí que ele, em uma aula sobre um texto de Kant, sequer apresente o texto de Kant , mas passe boa parte do tempo comentando um texto que ele próprio publicou em um jornal. No texto “O que é a Ilustração”, Kant faz uma distinção entre uso público e uso privado da razão. Ela nos causa estranhamento porque é contraintuitiva: somos livres no uso público da razão, mas não somos livres no uso privado. Mas não é nada tão complicado assim. Todos nós pagamos impostos. E quanto a isso não somos livres, estamos privados de nossa liberdade de fazer ou não fazer algo. Isso não significa, porém, que não possamos discutir o valor, sobre onde incidem os impostos, no limite, se é ou não legítima a cobrança de impostos. O sentido da discussão é justamente para que a legislação fiscal se aprimore. Então sou livre para discutir, e para discutir publicamente, isto é, sou livre no uso público da razão. Esse é um exemplo dado por Kant. Há um outro, agora em matéria de religião. É sobre esse que Olavo realmente se detém. O que diz Kant? Um sacerdote, quando investido da função religiosa, isto é, no momento do culto, no púlpito, não pode criticar a religião a que pertence. Mas ele pode fazê-lo como alguém que conhece a religião, que reflete sobre ela, e que pode propor interpretações, alterações. Kant diz então o seguinte: uma religião que proibisse a discussão colocada nesses termos estaria cometendo um crime, porque impediria o progresso em matéria religiosa. Conclui Olavo: para Kant, Jesus foi o maior criminoso da humanidade.
Mas como se pode concluir isso? Para ele todo filósofo tem “razões ocultas”, nunca escreve tudo o que pensa, método de leitura que ele afirma –só dando risada – se basear em Leo Strauss. Daí Olavo pode afirmar (afinal, apelando para razões ocultas a gente pode afirmar o que quiser) que o projeto de Kant é, no porão clandestino da filosofia, destruir o cristianismo. Isso porque o pacto que Jesus sela com os evangelistas é um pacto inquestionável. Mas como é que o pacto chega a nós, a não ser por meio de textos e leitura de textos e interpretações de textos? Vejam que, se Olavo tivesse razão, Lutero não poderia ter publicado suas 95 teses na porta de uma igreja em Wittenberg e dado origem à reforma. A suposta filosofia de Olavo é retrógrada a esse ponto: ele não é contra o Iluminismo, ele é contra a Reforma Protestante. Isso para não lembrarmos de que o próprio cristianismo deriva do judaísmo. E por que Lutero não poderia fazer o que fez? Porque tem uma “alma consagrada”, e em relação a uma alma consagrada não distingue entre uso público e uso privado da razão. Alma consagrada? O que é isso? Será que uma alma consagrada existe como existe esse texto que vocês estão lendo agora?
O texto de Kant[3] é um texto sobre a relação entre religião e política, entre Estado e Igreja, entre Estado e Sociedade. Não tem nada de alma consagrada. Não tem qualquer ataque contra o cristianismo. Agora, de modo absolutamente irresponsável Olavo[4] afirma que um projeto como o de Kant está na origem do regime político Iraniano, justamente um regime no qual não há distinção entre política e religião. Mais ainda. Ele afirma que Kant é um dos principais autores que inspiram o terrorismo internacional. Eis o ponto de chegada de um trama urdida com a mais completa desonestidade intelectual. Repito. A questão não é Kant. Olavo tenta passar a ideia de que valores como liberdade do pensamento, respeito à dignidade humana, ao pluralismo de visões de mundo, à limitação do poder do Estado, distinção entre religião e política, enfim, valores liberais e democráticos estão em colisão com os valores de nossa sociedade. Nossa sociedade não é uma sociedade de fanáticos intolerantes como querem fazer crer Olavo e seus seguidores. É uma sociedade que tem na religiosidade um elemento muito importante, mas que é muito distante dessa que vem sendo propagada, porque tolerante. Nosso imaginário, talvez como nunca, está fragmentado, partido. Olavo e seus asseclas, sobretudo aqueles que estão no poder, querem unificá-lo em um projeto obscurantista, antidemocrático e opressor, excludente, que naturaliza as desigualdades e perpetua a nossa miséria. A maior corrupção que nos afeta é a nossa incapacidade para resolvermos, passados já mais de um século, o escravismo presente em nossa sociedade. Não é Kant, portanto, que está em jogo. O que está em jogo somos nós, como sociedade, como povo, como democracia. Por isso a filosofia é importante. Por isso perdi o meu tempo com essa figura nefasta.
Não me interessa o que pensa Olavo de Carvalho. Me interessa o que vamos pensamos nós, juntos. Mas intolerância, o ódio e a violência que hoje parecem nos envolver a todos tem nele talvez o seu ponto mais forte. Vejam o caso de Jean Wyllys, por exemplo, que foi meu aluno. A primeira turma a que dei aula na Universidade Federal da Bahia foi a turma de Jean. Não dá para simplesmente assistir um indivíduo se utilizar da filosofia para fomentar, contribuir para um ataque dessa natureza a uma e várias pessoas e à democracia. Jean Wyllys, meu aluno, um dos deputados mais preparados e engajados na luta por suas ideias, resolve renunciar ao mandato por medo de ser assassinado. É como professor que não posso mais permitir que figuras como Olavo de Carvalho cometam os absurdos que cometem. Eu não vou abandonar Jean. Nós, verdadeiros professores, nós, que verdadeiramente trabalhamos com a filosofia, não podemos tolerar mais. Não podemos mais nos omitir. Precisamos entrar de modo muito decidido no debate público, elevar o nível, chamar às pessoas à razão e ao bom senso.
Daniel Tourinho Peres é Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia e pesquisador do CNPq. Sua área de atuação é História da Filosofia Moderna, com ênfase em filosofia alemã, e Filosofia Política. Publicou, entre outros trabalhos, Kant: Metafísica e Política. Salvador/São Paulo, Edufba/ UNESP, 2004.
[1]Olavo de Carvalho está errado e não entendeu Kant, dizem três nomes de destaque da academia brasileira, O Globo, 10 de Fevereiro de 2019. https://oglobo.globo.com/sociedade/olavo-de-carvalho-esta-errado-nao-entendeu-kant-dizem-tres-nomes-de-destaque-da-academia-brasileira-23440419
[2] Kant, I. Lógica, Trad. Guido de Almeida, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992, página 43.
[4] Uma análise/depoimento do fenômeno Olavo de Carvalho e sua prática de deturpações pode ser lida em um ensaio excelente de Daniel Salgado, intitulado Transgressão à Direita, e publicado na revista Serrote, número 30. https://revistaserrote.com.br/2018/11/transgressao-a-direita-por-daniel-salgado/
Em louvor da desobediência. Artigo de Donatella Di Cesare
“Os novos desobedientes são perigosos fora-da-lei,
que deveriam ser condenados criminalmente, ou são cidadãos exemplares a
cuja audácia se deve à vitalidade da democracia? Ameaçam a ordem pública
ou permitem refrear o ódio pelo outro, o racismo, as discriminações, em
nome de uma sociedade aberta? Assim pode ser sintetizado o dilema sobre
o qual se concentrou, nos últimos anos, o debate filosófico, jurídico e
político sobre o grande tema da desobediência civil”.
O artigo é de Donatella Di Cesare, filósofa italiana, publicado por Corriere della Sera, 10-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Não se dobrar às imposições da lei que se considera injusta é um ato
de responsabilidade para com a própria consciência. Os exemplos de Antígona e Sócrates, a lição instrutiva do caso de Eichmann. Os novos desobedientes
são perigosos fora-da-lei, que deveriam ser condenados criminalmente,
ou são cidadãos exemplares a cuja audácia se deve à vitalidade da democracia?
Ameaçam a ordem pública ou permitem refrear o ódio pelo outro, o
racismo, as discriminações, em nome de uma sociedade aberta? Assim pode
ser sintetizado o dilema sobre o qual se concentrou, nos últimos anos, o
debate filosófico, jurídico e político sobre o grande tema da desobediência civil.
Um debate que passou gradualmente à ordem do dia também por causa de
novas formas assumidas pela contestação social. Como em muitos outros
casos, o ponto de virada foi determinado pela experiência totalitarista
do século XX, quando a obediência zelosa do executor implacável
apareceu em toda a sua monstruosidade. Sobretudo porque a razão, à qual
se obedecia, não era mais aquela dos direitos universais, mas a fria e
anônima racionalidade do cálculo impessoal. Diante dos inéditos "monstros da obediência", como os chama Frédéric Gros no livro que agora chega às bancas Disobbedire (Desobedecer - em tradução livre -, da Einaudi), diante de Adolf Eichmann, o planejador logístico da Solução Final,
que em 1961 proclamava no tribunal que ele tinha simplesmente seguido
ordens, a questão se mostrava sob uma luz completamente diferente. Obedecer
significa, no final das contas, não ter que prestar contas de nada a
ninguém, nada pelo que responder. Resumindo: a responsabilidade aparecia
em uma relação muito diferente com a obediência. Aquele que se submetia
passivamente parecia totalmente desresponsabilizado. A "estupidez" de Eichmann, para citar Hannah Arendt,
estava justamente na ausência de juízo, na repetição de clichês, no
automatismo da palavra. Aqui está sua culpa efetiva: ter preferido não
saber, não ver, não pensar. Se o que tinha acontecido pudesse
repetir-se, quantos filhos de Eichmann teriam colocado
em risco inclusive as democracias? A organização técnico-burocrática de
vida, que segmentava a responsabilidade, tornando indiferentes e
anestesiando, teria facilitado o trabalho de futuros cinzentos
executores sem alma e sem piedade.
Aliás, já algumas décadas antes, em plena ditadura, a questão era mais a de obedecer. Assim escrevia Simone Weil:
"A submissão dos muitos aos poucos, este dado fundamental em quase
todas as organizações sociais, nunca deixou de espantar todos aqueles
que refletem um pouco a seu respeito." E, falando da Alemanha de Adolf Hitler,
ela acrescentava: "Quando impera a morte, o milagre da obediência salta
aos olhos. Que muitos se submetam a um só por medo de serem mortos já é
estarrecedor; mas que eles se mostrem tão submissos, a ponto de morrer
por sua ordem, como justificá-lo?"
Sob esse enfoque a desobediência revelava-se a escolha inalienável de liberdade que humaniza. Deve ser dito que já Kant,
no banco dos réus pela rígida formalidade da sua ética, apesar de ter
defendido firmemente o valor da obediência, sem a qual não existiria a
comunidade, não havia deixado de solicitar a vigilância. A coragem do
juízo crítico, até a dissidência civil, percorre e agita toda a tradição ocidental. A partir da figura emblemática de Antígona que, conscientemente, viola o decreto de Creonte,
um édito miserável de politiqueiro oportunista, desprovido de qualquer
legitimidade, que além disso choca-se contra as leis superiores, não
escritas, como aquela sobre o enterro dos mortos. A comunidade contra o
Estado, os direitos humanos contra os cínicos jogos de poder. E,
portanto, desobediência. O grito do desafio: "Nasci para amar, não para
odiar". Um irmão é um irmão. A humanidade é uma imensa família. Antígona
se recusa a operar divisões, discriminar aquele que lhe é mostrado como
"inimigo".
Mas é a filosofia que mantém alta a atenção sobre a desobediência. Como esquecer Sócrates? Acusado e condenado injustamente, ele renuncia a fugir, elogiando as leis da cidade; se tivesse fugido de Atenas,
poderia ter sido acusado de traição. Mais ainda: teria feito o papel de
um criminoso qualquer. Aceitar a sanção não significa, no entanto,
legitimá-la. Sócrates permanece em seu lugar para apontar o dedo contra
aqueles que o acusam, para que estoure o escândalo. Sua obediência
singular é uma forma de resistência que inaugura toda dissidência que
virá. Nele ganha voz o "não" da desobediência que é um "sim" à própria
consciência.
Contudo, não se deve confundir a objeção de consciência com a desobediência civil. O gesto de Henry Thoreau,
o anarquista que se orienta para a vida selvagem, contestando a
civilização da qual se recusa a participar, por exemplo, pagando os
impostos, é o gesto do objetor. A desobediência civil,
mesmo que praticado por um indivíduo, é ao contrário uma contestação
comum que coloca em dúvida as instituições, questiona as leis, em nome
de uma democracia renovada e de um projeto futuro. Disso decorre a
dimensão pública da desobediência. Denuncia-se a iniquidade de um
decreto sob os olhos de todos, ostentando, aliás, que a desobediência
que - de Gandhi a Martin Luther King – é direcionada não só e nem tanto às autoridades, quanto à consciência dos outros e ao sentido de justiça alheio.
Claro, o irresponsável não obedece, por incapacidade ou por negligência. Por outro lado, o desobediente
assume o risco de sua própria ação, reivindica algo a mais de
responsabilidade; recusa-se a continuar dizendo "sim" diante do
intolerável. A desobediência custa, requer esforço, não só porque
contesta as hierarquias do poder, mas também porque interrompe a
monotonia do hábito. Além de destacar o dissídio entre direito e
justiça, lança luz, assim, sobre uma submissão que, dada muito
rapidamente como descontada, poderia, com o tempo, revelar-se um perigo.
Por que o submisso obedece?
Essa é a questão levantada por Etienne de La Boétie em seu esplêndido panfleto sobre a servidão voluntária.
A resposta está na cadeia de cumplicidade: a pessoa aceita ser
tiranizada para poder tiranizar, de ser escravizada para escravizar.
Assim, o obediente se vinga ao se contentar com uma pequena parte
daquele dispositivo de poder que também mina a democracia.
A desobediência civil legítima, difícil e arriscada é
uma obrigação ética e um desafio político. Requer coragem. Acima de
tudo, a coragem de não trair a si mesmo, e a justiça em que se acredita,
para curvar-se ao comando alheio. Isso significa que, na des-obediência,
ainda permanece um obedecer - à própria consciência. E é por isso que o
gesto de quem diz "não" não pode ser interpretado como um ato
irresponsável de delinquência. Desobedecer é um ato responsável.
Esta é a lição que vem de Eichmann. Se eu não posso ser considerado responsável porque me limitei a obedecer,
então quando eu obedeço cegamente, seguindo a lei, eu me subtraio à
responsabilidade. Em um mundo onde as ações são segmentadas, e a
monstruosidade do todo corre o risco de não ser vista, onde a
indiferença exonera de reagir, onde a impotência política é confundida
com neutralidade soberana, a desobediência civil é uma obrigação
democrática.
op
https://outraspalavras.net/outrapolitica/michael-lowy-reformula-a-opcao-ecossocialista-1/
Michael Löwy reformula a Opção Ecossocialista
O pensador que ajudou a conceber a
articulação entre marxismo e movimentos verdes volta a ela, aprofunda-a e
sustenta: pode ser caminho, diante da crise civilizatória e da onda
conservadora
Publicado 01/02/2019 às 20:29 - Atualizado 02/02/2019 às 09:06
Por Michael Löwy, em Great Transition | Tradução: Marianna Braghini
Primeira Parte
Introdução
A civilização capitalista contemporânea está em crise. A acumulação
ilimitada de capital, a mercantilização de tudo, a exploração impiedosa
do trabalho e da natureza e uma brutal competição solapam as bases de um
futuro sustentável e portanto colocam em risco a própria sobrevivência
da espécie humana. A ameaça profunda e sistêmica que enfrentamos demanda
uma transformação profunda e sistêmica: uma Grande Transição.
Ao sintetizar os princípios básicos de ecologia e a crítica marxista da economia política, o ecossocialismo
oferece uma alternativa radical a um status quo insustentável. Ao
rejeitar uma definição capitalista de “progresso”, baseada em
crescimento de mercado e expansão quantitativa (a qual, como demonstra
Marx, é um progresso destrutivo), defende políticas fundadas em
critérios não-monetários, como as necessidades sociais, o bem estar
individual e o equilíbrio ecológico. O ecossocialismo propõe uma crítica
tanto da “ecologia de mercado” mainstream, que não desafia o sistema capitalista, como “socialismo produtivista”, que ignora limites naturais.
À medida em que as pessoas vão percebendo, cada vez mais, como as
crises econômicas e as crises ambientais estão entrelaçadas, o
ecossocialismo tem ganhado aderentes. O ecossocialismo, enquanto
movimento, é relativamente novo, mas alguns de seus argumentos básicos
vêm desde a época dos escritos de Marx e Engels. Atualmente,
intelectuais e ativistas estão recuperando este legado e buscando uma
reestruturação radical da economia, em acordo com os princípios do
planejamento democrático ecológico, colocando as necessidades humanas e
do planeta em primeiro plano e acima de tudo.
Os “socialismos de fato existentes” do século XX, com suas frequentes
burocracias alheias à questões ambientais, não oferecem um modelo
atrativo para os atuais ecossocialistas. Em vez disso, devemos traçar um
novo caminho à frente, que conecte a miríade de movimentos ao redor do
mundo que compartilham a convicção de que um mundo melhor não é somente
possível, mas também necessário.
Planejamento Democrático Ecológico
O núcleo do ecossocialismo é o conceito doplanejamento
democrático ecológico, no qual a própria população, não “o mercado” ou o
comitê central do partido comunista tomam as decisões sobre a economia.
No início da Grande Transição para este novo modelo de vida, com seu
novo modo de produção e consumo, alguns setores da economia terão de ser
suprimidos (por exemplo, a extração de combustíveis fósseis implicados
na crise climática) ou reestruturados, enquanto novos setores são
desenvolvidos. A transformação econômica deve ser acompanhada de uma
ativa busca de pleno emprego, com condições iguais de trabalho e
remuneração. Está visão igualitária é essencial tanto para construir uma
sociedade justa como para atrair o apoio da classe trabalhadora para a
transformação estrutural das forças produtivas.
Em última instância, tal visão é irreconciliável com o controle
privado dos meios de produção e do processo de planejamento. Em
particular, para que investimentos e inovações tecnológicas sirvam ao
bem comum, a tomada de decisões deve ser retirada dos bancos e
empreendimentos capitalistas que atualmente a controlam e colocada sob
domínio público. Então, a própria sociedade — nem uma pequena oligarquia
de donos de propriedade, nem uma elite de tecno-burocratas — irão
democraticamente decidir quais linhas produtivas serão privilegiadas, e
como os recursos serão investidos em educação, saúde e cultura. Grandes
decisões nas prioridades de investimento – tais como terminar todas
instalações a base de carvão ou direcionar subsídios agrícolas à
produção orgânica – seriam tomadas por voto popular direto. Outras,
menos importantes, seriam tomadas por grupos eleitos, em suas relevantes
escalas, nacional, regional ou local.
Apesar do receio dos conservadores do “planejamento central”, o
planejamento democrático ecológico, fundamentalmente, implica mais
liberdade, não menos, por diversas razões. Primeiro, ele oferece
libertação das reificadas “leis econômicas” do sistema capitalista que
aprisiona os indivíduos no que Max Weber chamou de “jaula de aço”. Os
preços dos bens não seriam deixados para as “leis de oferta e demanda”,
mas em vez disso, iriam refletir prioridades sociais e políticas, com o
uso de impostos e subsídios para incentivar bens sociais e desarticular
os males sociais. Idealmente, enquanto a transição ecossocialista
avança, mais produtos e serviços fundamentais para atender as
necessidades humanas seriam oferecidos de forma gratuita, de acordo com a
vontade dos cidadãos.
Segundo, o ecossocialismo é mensageiro de um aumento substancial do
tempo livre. Planejamento e redução da jornada de trabalho são dois
passos decisivos rumo ao que Marx chamou de “o reinado da liberdade”. Um
aumento significativo de tempo livre é, de fato, uma condição para a
participação dos trabalhadores nas discussões democráticas e gestão da
economia e da sociedade.
Por último, o planejamento democrático ecológico representa o pleno
exercício, pela sociedade, de sua liberdade para controlar decisões que
afetam seu destino. Se o ideal democrático não concede o poder de tomada
de decisão a uma pequena elite, por que o mesmo princípio não deveria
ser aplicado para as decisões econômicas? Sob o capitalismo, o valor de
uso – o valor de um produto ou serviço ao bem estar – existe apenas a
serviço do valor de troca, ou valor no mercado. Deste modo, muitos
produtos na sociedade contemporânea são socialmente inúteis, ou
desenhados para serem rapidamente substituídos (obsolescência
programada). Em contraste, em uma economia ecossocialista planejada, o
valor de uso seria o único critério para a produção de bens e serviços,
com consequências econômicas, sociais e ecológicas de longo alcance1.
O planejamento seria focado em decisões econômicas de larga escala —
não as de pequena escala, que podem afetar restaurantes locais,
mercados, pequenas lojas ou empreendimento artesanais. Mais importante,
tal planejamento é consistente com a autogestão, pelos trabalhadores, de
suas unidades produtivas. A decisão, por exemplo, de transformar uma
planta de produção automobilística para produzir ônibus e bondes, seria
tomada pela sociedade como um todo, mas a organização e o funcionamento
internos do empreendimento seriam democraticamente administradas pelos
trabalhadores. Há muitas discussões sobre o caráter “centralizado” ou
“descentralizado” do planejamento, mas mais importante é o controle
democrático em todos os níveis – local, regional, nacional, continental
ou internacional. Por exemplo, questões ecológicas do planeta, como
oaquecimento global, devem ser tratadas em uma escala global e portanto,
requerem alguma forma de planejamento democrático global. Isso posto, a
tomada democrática de decisões é bem o oposto do que geralmente se
descreve, frequentemente com desdém, como “planejamento central”, já que
as decisões não são tomadas por um “centro”, mas democraticamente
decididas pela população afetada em sua respectiva escala.
O debate democrático e plural deverá ocorrer em todos os níveis. Por
meio de partidos, plataformas ou outros movimentos políticos,
proposições variadas seriam submetidas às pessoas, e delegados seriam
respectivamente eleitos. Entretanto, democracia representativa deve ser
complementada – e corrigida – por uma democracia direta possibilitada
pela Internet, por meio da qual as pessoas irão escolher – em nível
local, nacional e posteriormente global – entre as grandes opções
sociais e ecológicas. O transporte público deveria ser gratuito? Os
proprietários de carros devem pagar impostos especiais para subsidiar o
transporte público? A energia solar deveria ser subsidiada, a fim de
competir com energia fóssil? A jornada de trabalho semanal deveria ser
reduzida para 30, 25 horas ou menos, com uma respectiva redução da
produção?
Tal planejamento democrático precisa de contribuições de estudiosos,
mas seu papel é educacional, para apresentar, à consideração popular dos
processos de tomada de decisão, visões informadas ou resultados
alternativos. Qual a garantia de que as pessoas irão tomar as decisões
ecologicamente sãs? Nenhuma. O ecossocialismo aposta que as decisões
democráticas se tornarão, cada vez mais, razoáveis e esclarecidas,
enquanto a cultura muda e as garras do fetichismo das mercadorias sejam
quebradas. Ninguém pode imaginar tal nova sociedade sem o alcance, por
meio da luta, auto educação e experiencia social, de um alto nível de
consciência socialista e ecológica. Em qualquer caso, não são as
alternativas – o mercado cego ou uma ditadura ecológica de “experts” — muito mais perigosas?
A Grande Transição do progresso destrutivo capitalista ao
ecossocialismo é um processo histórico, uma permanente transformação
revolucionária da sociedade, cultura e mentalidades. Promulgar esta
transição leva não só a um novo modo de produção e uma sociedade
igualitária e democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização
ecossocialista, além do reinado do dinheiro, além de hábitos de
consumos artificialmente produzidos pela publicidade, e além da produção
ilimitada de commodities que são inúteis e/ou danosas ao meio
ambiente. Tal processo transformativo para um programa ecossocialista
depende do apoio ativo da vasta maioria da população. O fator decisivo
ao desenvolvimento da consciência socialista e ecológica é a experiencia
coletiva da luta, de confrontos locais e parciais até a mudança radical
da sociedade global como um todo.
A Questão do Crescimento
A questão do crescimento econômico dividiu socialistas e
ambientalistas. O ecossocialismo, entretanto, rejeita a moldura dualista
de crescimento versus decrescimento, desenvolvimento versus antidesenvolvimento, porque ambas posição dividem uma concepção puramente quantitativa das forças produtivas. Uma terceira posição ressoa mais com a tarefa a frente: a transformação qualitativa do desenvolvimento.
Um novo paradigma de desenvolvimento significa dar um fim ao notório
desperdício de recursos sob o capitalismo, dirigido pela larga escala de
produção de produtos inúteis ou danosos. A industria de armas é,
obviamente, um exemplo dramático, mas, de forma mais geral, o propósito
primário dos “bens” produzidos – com suas obsolescências programadas – é
gerar lucro para grandes corporações. O problema não é o consumo
excessivo no abstrato, mas o tipo prevalente de consumo baseado
como é, em maciços desperdícios, e a conspícua e compulsiva perseguição
das novidades promovidas pela “moda”. Uma nova sociedade iria
reorientar a produção destinada à satisfação de necessidades autênticas,
incluindo água, alimentação, vestimenta, moradia e serviços básicos
tais como saúde, educação, transporte e cultura.
Obviamente, os países do Sul Global, onde estas necessidades estão
bem longe de serem satisfeitas, devem perseguir um desenvolvimento mais
“clássico” — ferrovias, hospitais, sistemas de saneamento e outras
infraestruturas. Além disso, em vez de imitar o modo como países ricos
constroem seus sistemas produtivos, estes países podem perseguir
desenvolvimento de maneiras mais ecologicamente amigáveis, incluindo a
rápida introdução de energias renováveis. Muitos países mais pobres irão
precisar expandir a produção agroecológica para cuidar de populações
crescentes e famintas; mas a solução ecossocialista é promover métodos
agroecológicos enraizados em unidades familiares, cooperativas ou
fazendas coletivas de larga escala – não os métodos destrutivos do
agronegócio industrializado, que envolve a adição intensa de pesticidas,
químicos e transgênicos.2
Ao mesmo tempo, a transformação ecossocialista iria encerrar o
gigantesco sistema de dívidas que o Sul Global agora enfrenta, bem como a
exploração de seus recursos por países avançados industrialmente, e
países em rápido desenvolvimento como a China. Em vez disso, podemos
vislumbrar um forte fluxo de assistência técnica e econômica do Norte ao
Sul, enraizado no robusto senso de solidariedade e reconhecimento de
que problemas planetários requerem soluções planetárias. Isto não
implica que as pessoas em países ricos “reduzam seus padrões de vida” —
apenas que evitem o consumismo obsessivo, induzido pelo sistema
capitalista, de mercadorias inúteis que não atendem necessidades reais
ou contribuem para o bem estar e prosperidade humana.
Mas como nós distinguimos necessidades autenticas das artificiais e
contraprodutivas? Em um grau considerável, os últimos são estimulados
pela manipulação mental da publicidade. Nas sociedades capitalistas
contemporâneas, a indústria da publicidade invadiu todas as esferas da
vida, moldando tudo desde o alimento que comemos e as roupas que
vestimos, até os esportes, cultura, religião e política. A publicidade
promocional se tornou onipresente, insidiosamente infestando nossas
ruas, paisagens, mídia tradicional e digital, moldando hábitos de
consumismo conspícuo e compulsivo. Além disso, a própria indústria de
anúncios é uma fonte de considerável de desperdício de recursos naturais
e tempo de trabalho, no fim das contas pago pelo consumidor, para um
ramo de “produção” que repousa na contradição direta com as reais
necessidades socioecológicas. Indispensável para a economia de mercado
capitalista, a indústria da publicidade não teria lugar numa sociedade
em transição ao ecossocialismo; ela seria substituída por associações de
consumidores que obtêm e disseminam informações sobre bens e serviços.
Enquanto estas mudanças já estiverem acontecendo em alguma medida,
velhos hábitos provavelmente persistirão por alguns anos, e ninguém tem o
poder de ditar os desejos das pessoas. Alterar padrões de consumo é um
desafio educacional presente, dentro de um processo histórico de mudança
cultural.
Uma premissa fundamental do ecossocialismo é que em uma sociedade sem
divisões de classe acentuadas e alienação capitalista, o “ser” terá
precedência em detrimento do “ter”. Em vez de buscar bens intermináveis,
as pessoas buscarão mais tempo livre, e as conquistas pessoais e
significativas que podem obter por meio de atividades culturais,
atléticas, recreacionais, científicas, eróticas, artísticas e políticas.
Não há nenhuma evidência de que a posse compulsiva deriva de uma
intrínseca “natureza humana”, como sugere a retórica conservadora. Em
vez disso, é induzida pelo fetichismo de mercadorias inerente ao sistema
capitalista, pela ideologia dominante e pela publicidade. Ernest Mandel
resume bem este ponto fundamental: “A contínua acumulação de mais e
mais bens […] não é de nenhuma forma um fenômeno universal e até mesmo
predominante no comportamento humano. O desenvolvimento de talentos e
inclinações para seu próprio bem; a proteção da saúde da vida; o cuidado
com as crianças; o desenvolvimento de relações sociais ricas […] se
tornam motivações maiores assim que as necessidades materiais básicas
são satisfeitas.”3
É claro, mesmo uma sociedade sem classes depara-se com conflitos e
contradições. A transição ao ecossocialismo iria confrontar tensões
entre as necessidades de proteger o meio ambiente e atender necessidades
sociais, entre imperativos ecológicos e o desenvolvimento da
infraestrutura, entre hábitos de consumo popular e a escassez de
recursos, entre impulsos comunitários e cosmopolitas. Lutas entre a
desejos em competição são inevitáveis. Portanto, pesar e balancear tais
interesses deve se tornar tarefa de um processo democrático de
planejamento, liberto dos imperativos do capital e da geração de lucros,
para se ter soluções por meio de discursos transparentes, plurais e
abertos ao público. Tal democracia participativa, em todos os níveis,
não significa que não serão cometidos erros, mas sim permite a
auto-correção, pelos membros da coletividade social, de seus próprios
erros. (continua)
Notas:
1 Joel Kovel, Enemy of Nature: The End of Capitalism or the End of the World? (New York, Zed Books, 2002), 215.
2 Via Campesina, uma rede
mundial de movimentos de camponeses que há muito argumenta em favor
deste tipo de transformação agricultural, ver mais em https://viacampesina.org
3 Ernest Mandel, Power and Money: A Marxist Theory of Bureaucracy (London, Verso, 1992), 206.
Na parte final do novo ensaio: as sintonias
e dissensos entre as teorias de emancipação social e o ambientalismo.
Por que as duas correntes podem — e precisam — se reencontrar. A
transição necessária para uma lógica pós-capitalista
Publicado 04/02/2019 às 20:03 - Atualizado 04/02/2019 às 21:05
Por Michael Löwy, em Great Transition | Tradução: Marianna Braghini
MAIS Michael Löwy reformula a Opção Ecossocialista (1) O
pensador que ajudou a conceber a articulação entre marxismo e
movimentos verdes volta a ela, aprofunda-a e sustenta: pode ser caminho,
diante da crise civilizatória e da onda conservadora
Bases Teóricas
Ainda que o ecossocialismo seja um fenômeno bastante recente, suas
bases teóricas podem ser rastreadas até Marx e Engels. Pois questões
ambientais não eram tão salientes no século XIX como na nossa era de
catástrofe incipiente ecológica, estas preocupações não exerciam um
papel central nos trabalhos de Marx e Engels. Ainda assim, seus escritos
usam argumentos e conceitos vitais para a concepção de uma alternativa
socialista e ecológica frente ao sistema prevalente.
Algumas passagens em Marx e Engels (e certamente nas correntes
dominantes marxistas que se seguiram), de fato adotam uma postura não
crítica em relação às forças produtivas criadas pelo capital, tratando o
“desenvolvimento das forças produtivas” como o principal fator no
progresso humano. Entretanto, Marx era radicalmente oposto ao que nós
agora chamamos de “produtivismo” – a lógica capitalista pela qual a
acumulação de capital, riqueza e commodities se tornam um fim em si
mesmo. A ideia fundamental de uma economia socialista – em contrastes
com as caricaturas burocráticas que prevaleceram nos experimentos
“socialistas do século XXI – é produzir valores de uso, bens
que são necessários à satisfação das necessidades humanas, bem estar e
plenitude. O fenômeno central do progresso técnico, para Marx, não era o
crescimento indefinido de produtos (“ter”) mas sim a redução do trabalho social necessário e
o concomitante aumento de tempo livre (“ser”).[4] A ênfase de Marx no
autodesenvolvimento comunista, no tempo livre para atividades
artísticas, eróticas ou intelectuais – em contraste com a obsessão
capitalista de consumir cada vez mais e mais bens materiais – implica em
uma redução decisiva da pressão no meio ambiente.[5]
Para além dos benefícios presumidos ao meio ambiente, uma
contribuição marxista chave para o pensamento socialista e ecológico, é
atribuir ao capitalismo uma ruptura metabólica – isto é, uma destruição
do intercambio material entre sociedades humanas e o meio ambiente. O
problema é discutido, inter alia, em uma famosa passagem de O Capital:
”A produção capitalista […] perturba a interação metabólica entre
o homem e a terra, isto é, impede o retorno ao solo de seus elementos
constituintes consumidos pelo homem na forma de alimento e vestuário;
daí impede o funcionamento das condições naturais eternas para a
fertilidade duradoura do solo […] Todo progresso na agricultura
capitalista é progresso na arte, não apenas de roubar o trabalhador, mas
de roubar o solo […] Quanto mais um país […] se desenvolve com base na
grande indústria, mais esse processo de destruição ocorre rapidamente. A
produção capitalista […] apenas desenvolve […] ao minar simultaneamente
as fontes originais de toda riqueza – o solo e o trabalhador”.[6]
Esta importante passagem esclarecer a visão dialética de Marx das
contradições do “progresso” e suas consequências destrutivas para a
natureza sob condições capitalistas. O exemplo, é claro, é limitado à
perda de fertilidade do solo. Mas neste base, Marx desenha um insight
mais amplo que a produção capitalista engloba uma tendência de solapar
as “condições naturais eternas.” De uma perspectiva semelhante, Marx
reitera seu argumento mais familiar que a mesma lógica predatória do
capitalismo explora e degrada os trabalhadores.
Enquanto os ecossocialistas mais contemporâneos são inspirados pelos
insights de Marx, ecologia se tornou bem mais central para suas análises
e ação. Durante os anos 1970 e 1980 na Europa e nos EUA, um socialismo
ecológico começou a tomar forma. Manuel Sacristan, um filósofo
dissidente comunista espanhol, fundou o jornal ecossocialista e
feminista Entretanto em 1979, introduzindo o conceito dialético de
“forças produtivas-destrutivas”. Raymond Williams, um socialista
britânico e fundador de estudos culturais modernos, se tornou um dos
primeiros na Europa à chamar por um “socialismo conscientemente
ecológico” e frequentemente creditado à ter criado o próprio termo
“ecossocialismo”. André Gorz, um filósofo e jornalista francês,
argumentou que a ecologia política deve conter uma crítica do pensamento
economista e chamou por uma transformação ecológica e humanista do
trabalho. Barry Commoner, um biólogo americano, argumentou que o sistema
capitalista e sua la destruição do meio ambiente, o que o levou à
conclusão de que “algum tipo de socialismo” era a alternativa
realista.[7]
Nos anos 1980, James O’Conner fundou o influente jornal Capitalismo,
Natureza e Socialismo, que foi inspirado por sua ideia da “segunda
contradição do capitalismo.” Nesta formulação, a primeira contradição é a
marxista, entre as forças e relações de produção; a segunda contradição
repousa entre o modo de produção e as “condições de produção”,
especialmente, o estado do meio ambiente.
Uma nova geração de eco-marxistas apareceu nos anos 2000, incluindo
John Bellamy Foster e outros ao redor do jornal Revisão Mensal, que
posteriormente desenvolveu o conceito marxiano de ruptura metabólica
entre as sociedades humanas e a natureza. Em 2001, Joel Kovel e o
presente autor publicaram “Um Manifesto Ecossocialista”, que foi
posteriormente desenvolvimento pelos menos autores, juntos com Ian
Angus, no Manifesto Ecossocialista de Belém em 2008, o qual foi assinado
por centenas de pessoas de quarenta países e distribuído no Fórum
Social Mundial em 2008. Desde então ele se tornou uma importância
referência para ecossocialistas ao redor de todo o mundo.[9] Porque Ambientalistas Devem Ser Socialistas
Como estes e outros autores mostraram, o capitalismo é incompatíveis
com um futuro sustentável. O sistema capitalista, uma máquina de
crescimento econômico alavancada por combustíveis fósseis desde a
Revolução Industrial, é uma das principais culpadas da mudança climática
e a crise ecológica mais ampla que ocorre na Terra. Sua lógica
irracional de expansão e acumulação intermináveis, desperdício de
recursos, ostentação do consumismo, obsolescência programada e busca de
lucro a qualquer custo, está levando o planeta a beira do abismo.
O “capitalismo verde” – estratégia de redução do impacto ambiental
enquanto se mantém as instituições econômicas dominantes – oferece uma
solução? A implausibilidade de tal cenário de Reforma Política tem sido
visto mais vividamente no fracasso de um quarto de século de
conferências internacionais para efetivamente mirar as mudanças
climáticas. As forças políticas comprometidas com a “economia de
mercado” capitalista que criou o problema não pode ser a fonte da
solução.
Por exemplo, na Conferência Climática de Paris em 2015, muitos países
resolveram se esforçar seriamente para manter o aumento médio da
temperatura global abaixo de 2º C (idealmente, eles concordaram, abaixo
de 1,5º C). De forma correspondente, eles se voluntariam à implementar
medidas de redução da emissão de gás carbônico. No entanto, eles não
implementam mecanismos de imposição nem quaisquer consequências em caso
de descumprimento e, portanto, nenhuma garantia que qualquer país irá
cumprir sua promessa. Os EUA, o segundo maior emissor de carbono, é
atualmente administrado por um negacionista do aquecimento global, que
tirou os EUA do acordo. Mesmo se todos os países de fato cumprirem o que
acordaram, a temperatura global subiria cerca de 3º C ou mais, com
grande risco de mudanças climáticas terríveis e irreversíveis.[10]
Ao
fim das contas, a falha fatal do capitalismo verde está no conflito
entre a micro-racionalidade do mercado capitalista com seu cálculo
curto-prazista de lucros e perdas, e a macro-realidade da ação
coletiva pelo bem comum. A lógica cega do mercado resiste a uma
rápida transformação da energia, longe da dependência de
combustíveis fósseis, em intrínseca contradição com a
racionalidade ecológica. A questão não é acusar os “maus”
capitalistas ecocidas, em oposição aos “bons” capitalistas
verdes; a culpa repousa em um sistema enraizado em uma impiedosa
competição e uma corrida pelo lucro de curto prazo que destrói o
equilíbrio da natureza. O desafio ambiental – construir um sistema
alternativo que reflita o bem comum em seu DNA institucional – se
torna intrinsecamente conectado ao desafio socialista.
O desafio requer a construção do que E.P. Thompson descreveu como
“economia moral” fundada em princípios não monetário, extraeconômicos e
sociais-ecológicos e governado através de processos de tomada de decisão
democráticos.[11] Muito mais do que uma reforma incremental, o que é
necessário é a emergência de uma civilização social e ecológica que
traga como prioridade uma nova estrutura energética e um conjunto de
valores e padrão de vida pós-consumista. Realizar esta visão não será
possível sem planejamento público e controle sobre os “meios de
produção”, os insumos físicos utilizados para produzir valor econômico,
tais como instalações, maquinário e infraestrutura.
Uma política ecológica que trabalha entre o prevalecimento das
instituições e as regras da “economia de mercado” estará longe de
atender os profundos desafios ambientais ante nós. Ambientalistas que
não reconhecem como o “produtivismo” flui a partir da lógica do lucro
estão destinados ao fracasso – ou, pior, serem absorvidos pelo sistema.
Exemplos não faltam. A falta de uma postura anticapitalista coerente
levou a maioria dos Partidos Verdes europeus – notavelmente na França,
Alemanha, Itália e Bélgica – a se tornarem meros parceiros
“eco-reformistas” na administração social-liberal do capitalismo pelos
governos de centro-esquerda.
É
claro, a natureza não se deu muito melhor sob o estilo de
“socialismo” soviético do que no capitalismo. Na verdade, essa é
uma das razões que o ecossocialismo carrega um programa e uma visão
muito diferentes do chamado “socialismo realmente existente” do
passado. Já que as raízes do problema ecológico são sistêmicas,
o ambientalismo deve desafiar o sistema capitalista prevalecente, e
isso significa levar a sério a síntese do século XXI de ecologia e
socialismo – o ecossocialismo.
Porque Socialistas Devem Ser Ambientalistas
A sobrevivência da sociedade civilizada, e talvez muito da vida no
Planeta Terra, está em risco. Uma teoria socialista, ou movimento, que
não integre a ecologia como elemento central em seu programa e
estratégia é anacrônica e irrelevante.
Mudanças climáticas representam a expressão mais ameaçadora da crise
ecológica no planeta, colocando um desafio sem precedente histórico. Se
for permitido que a temperatura global exceda níveis pré industriais em
cerca de mais de 2º C, cientistas projetam consequências cada vez mais
terríveis, tais como o nível dos mares subir tanto que arriscaria
submergir boa parte das cidades marítimas, de Dacca em Bangladesh à
Amsterdã, Veneza ou Nova York. Desertificações de larga escala,
alteração do ciclo hídrico e da produção agrícola, eventos climáticos
mais extremos e frequentes e perda de espécies. Nós já estamos em 1º C.
Será que vamos chegar a um ponto de inflexão para além do qual o planeta
pode suportar a vida civilizada ou mesmo tornar-se inabitável?
Particularmente preocupante é o fato de que os impactos da mudança
climática estão se acumulando em um ritmo mais rápido do que o previsto
pelos cientistas climáticos – os quais – quase como todos os cientistas –
tendem a ser altamente cautelosos. A tinta mal secou no relatório do
Painel Intergovernamental de Mudança Climática e os crescentes impactos
climáticos o faz parecer por demais otimista. Onde uma vez a ênfase era
em o que aconteceria no futuro distante, a atenção se volta cada vez
mais para o que nós enfrentamos agora e nos próximos anos.
Alguns socialistas reconhecem a importância de incorporar a
ecologia, mas objetam o termo “ecossocialismo” argumento que o
socialismo já inclui ecologia, feminismo, antirracismo e outros fronts
progressistas. Entretanto, o termo ecossocialismo, ao sugerir uma
mudança decisiva nas ideias socialistas, carrega uma importância
política significativa. Primeiro, ele reflete um novo entendimento do
capitalismo enquanto sistema baseado não só na exploração, mas também na
destruição – a massiva destruição das condições de vida no planeta.
Segundo, ecossocialismo estende o significado de transformação
socialista para além de uma mudança de proprietários para uma
transformação civilizacional do aparato produtivo, padrões de consumo e
todo um modo de vida. Terceiro, o novo termo ressalta a visão crítica
que ele adota das experiências do século XX em nome do socialismo.
O socialismo do século XXI, em suas tendências dominantes
(social-democracia de comunismo soviético), foi, na melhor das
hipóteses, desatento ao impacto humano no meio ambiente e, na pior,
completamente indiferente. Governos adotaram e adaptaram o aparato
produtivo do capitalismo ocidental em um esforço precipitado de “se
desenvolver”, enquanto permaneceram largamente alheios dos profundos
custos negativos na forma de degradação ambiental.
A União Soviética é um exemplo perfeito. Os primeiros cinco anos após
a Revolução de Outubro viram uma corrente ecológica se desenvolver e um
conjunto de medidas para proteger o meio ambiente foram, de fato,
promulgados. Mas aos fins de 1920, com o processo de burocratização
stalinista em andamento, um produtivismo negligente com o meio ambiente
foi sendo imposto na indústria e agricultura por meio de métodos
totalitários, enquanto ecologistas foram marginalizados ou eliminados. O
acidente de Chernobyl em 1986 representa um dramático emblema das
desastrosas consequências de longo prazo.
Alterar os donos da propriedade sem alterar como esta propriedade é
administrada é o fim da linha. O socialismo deve colocar uma
administração e reorganização democráticas do sistema produtivo no
coração da transformação, junto com um firme compromisso com a
administração ecológica. Nem o socialismo ou a ecologia sozinhos, mas
ecossocialismo.
Ecossocialismo e a Grande Transição
A luta pelo socialismo verde no longo prazo requer lutar por
reformas concretas e urgentes no curto prazo. Sem ilusões acerca das
perspectivas para um “capitalismo limpo”, o movimento para a profunda
mudança deve tentar reduzir os riscos às pessoas e ao planeta, enquanto
consegue tempo para construir o suporte para uma transição mais
fundamental. Em particular, a batalha para forçar os poderes que podem
reduzir drasticamente emissões do esfeito estufa segue sendo o front
chave, junto com os esforços locais para a mudança rumo aos métodos
agroecológicos, energia solar cooperativa e administração comunitária de
recursos.
Tais lutas imediatas, concretas, são importantes em si mesmas porque
vitórias parciais são vitais para o combate à deterioração ambiental e
desespero em relação ao futuro. No longo prazo, estas campanhas podem
ajudar a levantar consciência ecológica e socialista e promover o
ativismo desde abaixo. Tanto a consciência bem como a auto-organização
são pré condições decisivas e as bases para radicalmente se transformar o
sistema mundial. A síntese de milhares de esforços locais e parciais ao
formar um arco sob um movimento global sistêmico forja o caminho para
uma Grande Transição: uma nova sociedade e modo de vida.
Esta visão infunde na popular ideia de um “movimento de movimentos”,
o qual emergiu do movimento global de justiça e Fórum Sociais Mundiais e
que por muitos anos abrigou a convergência de movimentos sociais e
ambientais em uma luta comum. O ecossocialismo é apenas uma das
correntes dentre um fluxo mais ampla, com nenhuma pretensão de que é
“mais importante” ou “mais revolucionária” que outras. Tal competitiva
alegação de forma contraproducente cria polarização quando o que é
necessário é unidade.
Em vez disso, o ecossocialismo mira contribuir para uma série de ethos
adotadas pelos variados movimentos para uma Grande Transição. O
ecossocialismo vê a si como parte de um movimento internacional: já que
crises globais ecológicas, econômicas e sociais, não veem fronteira, a
luta contra as forças sistêmicas dirigindo estas crises deve também ser
globalizada. Muitas intersecções estão surgindo entre ecossocialismo e
outros movimentos, incluindo esforços para relacionar eco feminismo e
ecossocialismo como convergentes e complementares.[12] O movimento de
justiça climática traz antirracismo e ecossocialismo juntos em uma luta
contra a destruição das condições de moradia de comunidades sofrendo
discriminação. Em movimentos indígenas, algumas lideranças são
ecossocialistas, enquanto, por sua vez, muitos ecossocialistas vem o
modelo de vida indígena, assentado em solidariedade comunitária e
respeito à Mãe Natureza, como uma inspiração para a perspectiva
ecossocialista. da mesma forma, o ecossocialismo encontra voz dentro dos
movimentos camponeses, sindicais, de decrescimento e outros.
O agrupador movimento dos movimentos busca a mudança do sistema,
convencido de que outro mundo é possível, para além da mercantilização,
destruição ambiental, exploração e opressão. O poder das elites
dominantes entrincheiradas é inegável e as forças de oposição radical
continuam fracas. Mas elas estão crescendo e se colocam como nossa
esperança para parar o catastrófico curso de “crescimento” capitalista. O
ecossocialismo contribui com uma importante perspectiva para fomentar a
compreensão e a estratégia para este movimento para uma Grande
Transição.
Walter Benjamin definiu revolução não como locomotivas da história,
como Marx, mas como a humanidade tentando alcançar o freio de emergência
antes que o trem caia no abismo. Nós nunca precisamos tanto alcançar em
conjunto a alavanca e colocar em um novo trilho para um destino
diferente. A ideia e prática do ecossocialismo pode nos ajudar a guiar
este projeto histórico-mundial.
NOTAS
4 A oposição entre “ter” e “ser” é
frequentemente discutida no Manuscritos de 1844. Em tempo livre como
fundação do “Reino da Liberdade” socialista, ver Karl Marx, Das Kapital,
Volume III, Marx-Engels-Werke series, vol. 25 (1884; Berlin: Dietz
Verlag Berline, 1981), 828.
5 Paul Burkett, Ecological Economics: Toward a Red and Green Political Economy (Chicago, Haymarket Books, 2009), 329.
6 Karl Marx, Das Kapital, Volume 1, Marx-Engels-Werke series, vol. 23 (1867; Berlin: Dietz Verlag Berlin, 1981), 528-530.
7 Ver, por exemplo, Manuel Sacristan,
Pacifismo, Ecología y Política Alternativa (Barcelona: Icaria, 1987);
Raymond Williams, Socialism and Ecology (London: Socialist Environment
and Resources Association, 1982); André Gorz, Ecology as Politics
(Boston, South End Press, 1979); Barry Commoner, The Closing Circle:
Man, Nature, and Technology (New York: Random House, 1971).
9 Ver https://www.greattransition.org/explore/scenarios para acessar o cenário de Reforma Política e outros cenários globais
10 Programa de Meio Ambiente dos EUA, The
Emissions Gap Report 2017 (Nairobi: UNEP, 2017). Para acessar o
relatório ver em
https://news.un.org/en/story/2017/10/569672-un-sees-worrying-gap-between-paris-climate-pledges-and-emissions-cuts-needed
11 E. P. Thompson “The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth Century,” Past & Present, no. 50 (February 1971): 76-136.
12 See Ariel Salleh’s Ecofeminism as Politics (New York: Zed Books, 1997), or the recent issue of Capitalism, Nature and Socialism (29, no. 1: 2018) on “Ecofeminism against Capitalism,” with essays by Terisa Turner, Ana Isla, and others.