Ojuiz federal Leonardo Safi de Melo, 53 anos, levou um susto quando o alarme de incêndio do prédio onde mora, no bairro Paraíso, área central de São Paulo, disparou. Eram pouco mais de 6 horas da manhã do dia 30 de junho, terça-feira. Melo correu para a sacada do apartamento, de frente para a Rua Doutor Tomás Carvalhal. Do quinto andar, viu uma pequena confusão na portaria do edifício: sete policiais federais, com os indefectíveis coletes pretos, e dois policiais militares discutiam com o porteiro.
Temendo um assalto, o homem recusava-se a abrir o portão para a Polícia Federal. De nada adiantou a delegada chefe da equipe identificar-se e mostrar o mandado judicial para aquele endereço. Enquanto discutia com os policiais, o porteiro chamou a PM. Quando parte da equipe da PF começou a pular a grade do prédio, o porteiro acionou o alarme de incêndio, acordando os moradores, entre eles o juiz Melo.
Ao perceber a Polícia Federal na entrada do edifício, o magistrado entrou em pânico. Antes que os policiais tomassem o elevador, ele pegou seus dois telefones celulares, jogou no vaso sanitário e deu descarga. Mas os aparelhos eram grandes demais para seguirem pela tubulação. Quando os policiais tocaram a campainha, o juiz, ainda de pijamas, abriu a porta, tentando demonstrar tranquilidade. Os agentes vasculharam toda a casa até encontrarem os dois celulares boiando na água da latrina. Depois de fotografar a cena insólita (a imagem consta no inquérito obtido pela piauí), os policiais retiraram os aparelhos da água e pediram ao juiz as senhas de acesso. Melo recusou-se a fornecer. A equipe da PF recolheu documentos e computadores, além de 30 mil reais e 11 mil dólares em espécie, e em seguida a delegada disse ao juiz que ele estava preso.
Era o ápice de uma investigação de três meses da Polícia Federal para apurar denúncias de um esquema instalado na 21ª Vara Federal Cível de São Paulo, na qual Melo atua como juiz titular. Tudo começou no fim de 2019, quando dois advogados da Empreendimentos Litorâneos S/A constataram que chegara ao fim o processo judicial que discutia o valor da indenização devida à empresa pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pela desapropriação, em 1986, de uma área de 6,9 mil hectares em Eldorado, Sul do estado de São Paulo. Somente pelas benfeitorias do imóvel o Incra deveria pagar à empresa 777,6 milhões de reais – o valor da terra nua permanece em discussão na Justiça.
Os advogados da empresa ingressaram com uma ação na 21ª Vara Federal Cível, onde tramitava o processo original do caso, para que a sentença condenatória do Incra fosse cumprida, e o pagamento, efetivado. Para calcular o valor exato devido à Empreendimentos Litorâneos, o juiz Melo nomeou o perito particular Tadeu Rodrigues Jordan, que já atuara em outros processos na mesma vara. No dia 12 de fevereiro deste ano, os dois advogados se reuniram com Jordan no escritório deste último, na Barra Funda, para debater detalhes do caso. Em certo momento, o perito convidou uma quarta pessoa para a reunião: o diretor da Secretaria da 21ª Vara, Divannir Ribeiro Barile. O servidor público disse estar preocupado com o andamento do processo e propôs uma solução rápida para agilizar o pagamento do precatório do Incra – por lei, para que a empresa recebesse o valor em 2021, o juiz teria até o dia 30 de junho deste ano para determinar o pagamento. Em troca, Barile propôs o pagamento de uma propina de 6,9 milhões de reais, equivalente a 0,9% do valor total do precatório, a ser pago em três parcelas. Para dar credibilidade ao pedido, o diretor da secretaria sugeriu que falava em nome dos “ingleses” – em referência ao juiz Melo.
Os dois advogados saíram do escritório assustados. Com o aval dos proprietários da Empreendimentos Litorâneos, no início de março procuraram a Superintendência da Polícia Federal na capital paulista para delatar o achaque que haviam sofrido. Com autorização do Órgão Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, responsável por investigar os juízes federais paulistas, começava a Operação Westminster, famoso distrito no Centro de Londres – o nome alude ao termo utilizado pelo servidor público para se referir ao magistrado.
Orientados pelo delegado Alberto Ferreira Neto, os advogados da Empreendimentos Litorâneos agendaram no escritório de um deles, na Avenida Paulista, uma segunda reunião com Jordan e Barile, às 11h30 do dia 10 de abril. Na data anterior, agentes da PF instalaram diversas câmeras e microfones ocultos na sala onde ocorreria o encontro. Enquanto os dois advogados recebiam o perito e o servidor público, um grupo de policiais acompanhava tudo no cômodo ao lado. Barile foi direto ao ponto:
– Gente, eu vou deixar bem claro uma coisa, pra gente poder avançar tudo aqui, eu tô sendo “longa manus” do cardeal lá, e ele é “combinou tá combinado” […]. Uma coisa que ele sempre me pontuou é o seguinte, em outros negócios que a gente fez: teria a possibilidade de uma parte, não importa o volume, [ser] em dinheiro?
– Mas quanto isso é, em termos representativos? – perguntou um dos advogados.
– Eu acho que, pra dar uma diluída nisso aí, é 10% a 20% em dinheiro, é uma coisa que quebraria bastante essa movimentação financeira […]. Pode ser dólar ou real, e se precisar uma outra possibilidade, eu tenho amizade com um doleiro, se precisar receber pelo doleiro também dá pra receber – respondeu o diretor da secretaria.
Um dos advogados se mostrou inseguro:
– Assim, eu não o conheço, o doutor [Leonardo Melo] é ponta firme?
– Porra! – exclamou Jordan.
– A batuta do mando é dele, mas a operação é minha – afirmou Barile. – É, ele que traça a estratégia “ó vamos nesse aqui e deixa…”, porque tem outros casos também. Ele que faz, ele que faz a estratégia, “não, esse daqui, esse daqui, isso aqui esquece, isso aqui você decide assim”. Ele manda decidir, eu vou cumprir o que ele manda decidir.
No fim de maio, Barile telefonou para o juiz Melo para dar detalhes do caso da Empreendimentos Litorâneos – os telefones de ambos já estavam grampeados pela PF com autorização judicial:
– Então, quer dizer, não, não rolou, então? Eles não… caíram fora? – perguntou o magistrado.
– Eles pediram para que o Incra pague a perícia.
– Sei. Ah, os caras tão de brincadeira, Divannir […]. Então seu sexto sentido tava certo naquele do Empreendimentos [Litorâneos], os caras tavam meio ressabiados.
Aterceira e última reunião do grupo ocorreu no início da tarde de 8 de junho, novamente no escritório do perito Jordan, na Barra Funda. Como a PF não poderia controlar o cenário como no encontro de abril, os agentes trocaram dois dos botões superiores da camisa de um dos advogados da Empreendimentos Litorâneos por uma câmera e um microfone disfarçados de botões. Logo após o almoço, Barile chegou ao prédio onde mora o juiz Melo. De lá, ambos seguiram em um automóvel sem placas até o escritório do perito – toda a movimentação foi acompanhada por policiais à paisana. Jordan recebeu o magistrado e o servidor no subsolo do edifício, e de lá encaminhou-os até a sua sala por uma entrada nos fundos do prédio. Para passar pela roleta sem precisar identificar-se na portaria – e, assim, deixar registros de sua presença –, Melo utilizou o crachá da mulher do perito. Os três subiram até o décimo andar pelas escadas, evitando as câmeras dos elevadores.
Na sala de reunião do escritório, havia seis cadeiras. O perito sentou-se em uma das pontas, e os dois advogados da empresa, em um dos lados da mesa. Cerca de quinze minutos mais tarde, Melo entrou na sala com Barile. Com calça preta e camisa polo da mesma cor, o juiz utilizava uma máscara de tons verdes e desenhos de camuflagem. Os dois se sentaram de frente para os dois advogados na mesa. Um dos advogados se mostrava tenso:
– A gente precisa saber, acho que todos nós precisamos nos blindar,
então os senhores têm certeza que estamos todos blindados, sem problema nenhum, doutor? – disse um deles, olhando para o juiz.
– Sem problema – respondeu Melo.
– Isso não extravasa, isso não ultrapassa, é… Sem querer fazer piada
numa coisa que é séria, né, ninguém quer ser matéria do Jornal Nacional, né, doutor?
– Não.
Naquela conversa, gravada e filmada, as partes acordaram que a propina de 6,9 milhões de reais seria paga em três parcelas: a primeira no dia 25 de junho e a segunda quando o valor do precatório fosse incluído no Orçamento da União. Sobre a terceira, os advogados propuseram que fosse paga quando os 700 milhões de reais fossem liberados, em 2021. O juiz concordou: “Por mim, tudo bem.”
A conversa com Melo e Barile durou menos de dez minutos. Depois de levar o juiz e o servidor até o subsolo do prédio, o perito retornou à sala com as advogadas Deise Mendroni de Menezes, ex-servidora da Justiça Federal de São Paulo, e sua sobrinha Clarice Mendroni Cavalieri. Logo ficou claro o papel delas no esquema: “esquentar” o dinheiro da propina por meio de um falso contrato de prestação de serviços advocatícios.
– Pra gente operacionalizar, nós temos que fazer um contrato de prestação de serviço, o meu escritório fazendo uma prestação de serviço, aí […]. Eu preciso de um e-mail pra eu encaminhar os termos do contrato, aos senhores ou a quem de direito, ou as sugestões que os senhores vão fazer – afirmou Menezes.
– Só aquela questão que eu fico muito preocupado, a gente tem que
ter muita reserva, o que tá sendo feito aqui é uma coisa de matéria de jornal – disse um dos advogados.
– Fantástico inclusive – respondeu Cavalieri, em alusão ao programa da TV Globo.
Poucos dias depois, Deise Menezes encaminhou para o e-mail dos advogados a minuta do contrato, que previa o pagamento, ao escritório dela, de 0,9% do valor devido à Empreendimentos Litorâneos pelo Incra em três parcelas, exatamente nas datas acordadas anteriormente com o juiz Melo e o diretor Barile. A Menezes mantinha negócios suspeitos com o magistrado. Na caixa de e-mails do juiz, a PF encontrou cópia de um contrato de 2018 que tratava da compra de um imóvel em nome do filho de Melo no bairro do Brooklin, em São Paulo, pelo valor de 264 mil reais, dos quais 60 mil reais foram pagos com um cheque da conta da advogada Deise Menezes. Para o Ministério Público Federal, o contrato indica um possível fluxo financeiro ilícito da advogada para o juiz federal.
No dia 25 de junho, quando deveriam depositar a primeira parcela do suborno, os advogados telefonaram para Jordan e, a pedido do delegado da PF, pediram mais alguns dias para fazerem o pagamento. Era o tempo que a Polícia Federal precisava para deflagrar a operação Westminster. Além de Melo, foram presas por determinação da desembargadora Therezinha Cazerta mais cinco pessoas, entre elas o perito Jordan, Barile, e as advogadas Menezes e Cavalieri. O grupo é investigado por corrupção passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Melo ocupa uma cela individual da carceragem da Superintendência da Polícia Federal, na Lapa. Na quarta-feira, 8, o Órgão Especial do TRF transformou a prisão temporária do juiz em preventiva, sem prazo previsto.
Além do episódio do precatório da Empreendimentos Litorâneos, a PF suspeita que Melo, Barile e Jordan agissem ilegalmente em outros processos da 21ª Vara Federal Cível da capital. Entre o fim de abril e o início de maio, Barile teve dois encontros no restaurante do hotel Emiliano, no Jardim Paulista, com Menezes, Cavalieri e o advogado de uma empresa em uma ação de desapropriação que tramitava na Vara de Melo. Dias depois, o juiz deu decisão favorável à empresa daquele advogado. Para o MPF, a decisão do magistrado ocorreu “possivelmente devido ao recebimento de vantagem indevida”.
Em outro episódio, o juiz pareceu escorregar nas palavras quando falava ao telefone com Barile sobre um dos processos que tramitam em seu gabinete:
– Ó, e aquele lá do Ribas, […] eu vou fazer um cálculo lá do supostamente incontroverso e expedir o precatório, quero nem
saber – disse Barile.
– Expedir o precatório, mas sem acertar nada com o cara? – perguntou o magistrado.
Nesse momento, o subordinado interrompeu o chefe:
– Peraí que eu vou te ligar aí.
Outro detalhe que chamou a atenção dos procuradores do MPF foram os altos valores dos honorários pagos ao perito Jordan por decisão do juiz Melo, quase sempre em torno de 200 mil reais – o perito atua em ao menos dezenove ações em trâmite na 21ª Vara Federal Cível. Para os procuradores, “as distorções relacionadas aos elevados arbitramentos de honorários – sempre em favor do perito Tadeu Rodrigues Jordan – sugerem que a organização também atue na divisão de valores relacionados às perícias, o que pode configurar a prática do crime de peculato”.
O advogado Carlos Kauffmann, que defende o juiz Melo, disse que não pode se pronunciar sobre o inquérito porque a investigação tramita sob sigilo. Já João Manssur, advogado de Barile, disse que a prisão não é justificada e que “tem ares de antecipação de pena”. Por isso, pediu ao TRF a prisão domiciliar do servidor público. As defesas das advogadas Menezes e Cavalieri disseram considerar “uma arbitrariedade” as prisões de ambas, sobretudo pelo fato de a primeira ser idosa – tem 67 anos – e a segunda estar grávida. A piauí não conseguiu contato nesta quinta-feira, 9, com o advogado de Jordan, Rafael Bernardi Jordan, filho dele. A reportagem enviou e-mail a ele, mas não houve retorno.