segunda-feira, 10 de junho de 2019

Um professor

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Um professor

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Um professor
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Haddad: "O sistema vai reagir, não tenha dúvida de que ele [Bolsonaro] vai encontrar resistência" (Foto: Marcus Steinmeyer)

Descendente direto de libaneses, Fernando Haddad tem verdadeira admiração pelo avô, um padre cristão ortodoxo famoso pela bravura durante as duas grandes guerras e a ocupação francesa. É a lembrança desse avô – que só conheceu das muitas histórias que ouviu – e a vitalidade de sua religião que o faz pensar na política como “a afirmação da vida em meio à barbárie, em meio a tudo que a nega”. O ex-prefeito de São Paulo certamente pensa o mesmo da educação, tema que lhe é tão caro e pelo qual ficou conhecido. Mesmo quando era ministro nos governos Lula e Dilma, período em que ajudou a criar o Fundeb, o Sisu, a reforma do Enem, o Fies, o Pibid e a Universidade Aberta, para citar apenas algumas das melhorias direcionadas aos estudantes do Brasil, Haddad fazia questão de preencher check-ins em hotéis com a palavra professor, hoje tão vilipendiada. Discípulo intelectual de Lukács e Marcuse, entre outros, considera que “a dialética está para as ciências humanas como a relatividade está para as ciências naturais”. Tal afirmativa seria taxada de “marxismo cultural” por aqueles que hoje promovem uma balbúrdia no campo da educação: o presidente Jair Bolsonaro, seu mentor Olavo de Carvalho e o atual nome à frente do MEC, Abraham Weintraub, autor de gafes notórias, uma delas envolvendo o escritor Franz Kafka. “O que menos importa para esse pessoal é a evidência empírica, a realidade”, analisa o ex-candidato do PT, que na última eleição presidencial recebeu 46 milhões de votos. Na conversa a seguir, realizada em sua casa modernista no bairro da Saúde, em São Paulo, ele fala, com espontaneidade e modéstia na medida, da educação que recebeu dos pais, do processo de criação e implementação dos CEUs, das leituras de autores da Escola de Frankfurt, de sua compreensão da grandeza de Paulo Freire, de sua gestão no MEC, do conceito de educação republicana e se mostra otimista quanto às possibilidades de enfrentamento da onda crescente de obscurantismo no país. “O sistema vai reagir”, garante. Hoje professor universitário e colunista da Folha de S.Paulo, continua presente nas grandes manifestações de resistência aos cortes nas universidades, escolas e bolsas de pesquisa, onde costuma ser muito aplaudido. Ecoando Darcy Ribeiro, é categórico: “O obscurantismo é parte de um projeto.”
Revista CULT – Como foi a sua educação?
Fernando Haddad – Eu sou filho de imigrante. Meu pai, no Líbano, era camponês. E meu avô era padre, não celibatário, da Igreja Ortodoxa. Meu pai, que nasceu em 1923, veio para cá aos 24 anos. Cinco anos depois, veio a abrir um comércio aqui na região da 25 de Março. Em 1981, entro na Faculdade de São Francisco, que era perto. Eu estudava de manhã e caminhava ali no calçadão para trabalhar com meu pai à tarde. Em 1985, me tornei presidente do centro acadêmico, o XI de Agosto. Ali se discutia campanha das diretas, Assembleia Nacional Constituinte, direitos humanos. Tive aula com Fabio Comparato, Gofredo Telles Jr., Dalmo Dallari, essa turma. Em virtude do meu envolvimento com a política, me interessei muito por economia e filosofia. A gente lia Adorno, Lukács, Marx, Hegel, Kant. Aí fui fazer mestrado em Economia na FEA [Faculdade de Economia e Administração da USP], sobre o colapso do socialismo real. Saiu publicado, chama O sistema soviético: relato de uma polêmica (1992). De 1990 a 96 fiz meu doutorado em Filosofia, uma discussão sobre o materialismo histórico do Habermas, com a ideia de que ele não poderia mais ser considerado um herdeiro da Escola de Frankfurt. Aí prestei o concurso para professor da USP, de ciência política. E três anos depois fui chamado pelo João Sayad para ser subsecretário da Secretaria de Finanças da cidade, na gestão da Marta [Suplicy].
Mas como era a educação em casa?
Meus pais sempre me incentivaram muito a estudar. Mas meu pai passou um período da vida com muito pouco dinheiro, então minha casa era privada de bens materiais ligados à cultura, a gente tinha dificuldade de adquirir livro, instrumento musical, disco. A minha adolescência foi muito apertada, muito mesmo. Meu pai nunca frequentou uma escola, mas minha mãe era uma normalista apaixonada por livros. A primeira coisa que me impactou na vida, nesse sentido, foi quando a gente comprou uma enciclopédia, a Delta Junior, um momento de glória para mim (risos). Já na faculdade, vieram aquelas coleções, Os Economistas, Os Pensadores. Só comecei a comprar minha própria coleção de livros no terceiro ano da faculdade. Fui muito marcado pelo História e consciência de classe, do Lukács. É tranquilamente um dos dez livros mais importantes do século passado – ou cinco. Para mim, esse e o Dialética do esclarecimento [de Adorno e Horkheimer], Minima moralia [Adorno], O homem unidimensional e o Eros e civilização, do Marcuse, são livros fundamentais.
Dos ensinamentos da Escola de Frankfurt, o que podemos aproveitar hoje, nesses tempos de obscurantismo?
Eu tinha um professor, o Gabriel Cohn, que dizia assim: “o problema do Adorno é que ele era otimista”. De fato, a gente se deixou enganar por essa normalidade do pós-Segunda Guerra, que deu margem à ideia de que as coisas estavam se arrumando. Antes de o [Francis] Fukuyama escrever o livro dele [O fim da história e o último homem, 1992], o Habermas parecia ser o sociólogo do status quo, assim como o Hegel foi o filósofo do Estado prussiano. A minha intuição é de que aquele mundo estava se decompondo, e o Habermas tinha sido pego no contrapé da história. Em 1981 começa o neoliberalismo com todas as suas consequências: desregulamentação financeira, globalização, mundialização do capital, hegemonia do capital financeiro sobre o produtivo, movimentos especulativos em todos os mercados, acionário, de hipotecas etc. Como economista, eu olhava para aquilo e pensava: o Habermas é o sociólogo de uma normalidade que acabou. E, como eu tinha lido os frankfurtianos, ficou fácil fazer uma crítica dialética ao materialismo não dialético dele. Acredito que a dialética está para as ciências humanas como a relatividade está para as ciências naturais, a física. E por isso incomoda tanto, ela tira o sono, tira o chão. Eu entendo que, de certa maneira, essa tríade Freud-Einstein-Marx forma o que chamo de pensamento pós-iluminista, porque a própria razão iluminista é colocada em suspenso diante de uma realidade natural e social que desafia o pensamento humano.
E como você e a Ana Estela partilharam a educação dos filhos?
Eu e a Estela sempre nos vimos como professores. Mesmo ocupando cargo de ministro ou prefeito, eu me registrava no check-in de hotel como professor. O Frederico fez São Francisco, defendeu o mestrado esse ano, a Carolina está na Poli da USP. Para nós sempre foi muito natural oferecer para os dois as melhores condições de desenvolvimento intelectual. Do ponto de vista ético-moral, as duas famílias vêm de uma tradição cristã muito forte. Minha mãe é kardecista, a gente lia o evangelho toda quarta-feira. Não sou praticante, mas sou fã do cristianismo ortodoxo, é de uma vitalidade extraordinária. Vou te contar uma coisa curiosa: eu me identifiquei muito com o Nietzsche, na dimensão espiritual. Pensei: esse cara conversa comigo. Ao longo do tempo, fui percebendo que o cristianismo ortodoxo tem muito do nietzschianismo, porque é um cristianismo não da comiseração, mas da exuberância. Tem uma passagem do Nietzsche em que ele fala: a caridade só é compreensível à luz do transbordamento, quando sobra – sobra de você. E sou muito fã do meu avô, passei minha vida inteira ouvindo histórias sobre a coragem dele. Ele viveu as duas grandes guerras, a ocupação da França, os conflitos religiosos. No Líbano, o padre é um guerreiro – pela vida e não pela morte. Essa afirmação da vida em meio a muito conflito é uma coisa que me diz muito, até na política. Porque para mim a política é a afirmação da vida em meio à barbárie, em meio a tudo que a nega. É o que me faz fazer política. Não tenho outra motivação.
Você tem vontade de se candidatar novamente?
O ativismo político é uma coisa inerente a mim. Conceber um bom curso, ensinar direito, ajudar a formar uma pessoa crítica, que seja capaz de formar sua própria personalidade, participar de uma assembleia, fazer um ato, escrever num jornal… para mim tudo isso são gestos políticos. Agora, disputar eleição é uma coisa que tem a ver com o contexto do momento. Eu não tenho como meta disputar eleições, mas estou disponível se for o caso. Outro dia o Lula me perguntou qual era o meu projeto pessoal e falei que eu era muito ambicioso para ter projetos pessoais (risos). Projeto pessoal é típico de quem não tem ambição real, de transformação das condições sociais. Não é o meu caso.
Um grande projeto social seu foi a concepção e implementação dos CEUs. Você pode comentar sobre isso?
Esse meu vínculo com a educação é muito antigo, até por minha mãe ser professora. Eu sempre quis ter uma escola. Era a coisa mais bacana que podia acontecer. Na gestão da Marta, apesar de estar na Secretaria de Finanças, quase por obra do acaso eu acabei me envolvendo com o projeto dos CEUs. Fui fazer um voo de helicóptero com o [deputado] Paulo Teixeira e o [então secretário municipal de Finanças] João Sayad pela periferia de São Paulo, que eu não conhecia. O Paulo queria que a gente, como gestores municipais, se sensibilizasse com aquilo de que a cidade precisava. Foi quase que uma educação política mesmo. Então eu falei para o João: a gente deveria fazer praças da República na periferia, com a Casa Caetano de Campos, a Biblioteca Mário de Andrade, o Teatro Municipal… a gente deveria abrir uma clareira e fazer o Estado chegar lá. Ele adorou. Aí fui visitar o Eugênio Bucci, que foi meu antecessor no XI de Agosto. E contei a ideia. O Angelo, irmão do Eugênio, disse: esse projeto já existe, mas nunca saiu do papel, é do Alexandre Delijaicov. Fui até ele, fizemos a maquete e a levamos até a Marta. Eu disse a ela: essa vai ser a marca da sua gestão, você vai ser conhecida por isso. Foi muito bonito.
Como ministro dos governos Lula você continuou dando muita atenção à educação básica.
O Lula foi o presidente que mais investiu em educação básica na história deste país. Ele mais do que dobrou o investimento por aluno na educação básica, através de algumas iniciativas. A primeira, óbvio, foi a criação do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], depois o piso nacional do magistério. Foi o presidente que mais expandiu a educação profissional na história da República e o que mais expandiu a educação superior e o número de creches. O Lula não pulou etapa, ele fez toda a agenda da educação; como a gente dizia: da creche à pós. Nunca disse não para o Ministério da Educação. Eu tive a honra de ter servido o presidente que fez mais pela educação, como ministro da Educação. Não é que ele fez pela básica: foi pela básica, pela superior, pela inclusiva, pela profissional, pela à distância…
Dá a impressão de que estamos dando um salto para trás: da melhor gestão em educação no país para a pior.
Ou que se anuncia como a pior. Provavelmente será, apesar de estar no começo. Ele [o presidente Bolsonaro] conseguiu trocar um péssimo ministro por um outro tão ruim quanto, mas mais ativo. Esse corta.
E a educação em direitos humanos, que é outro tema caro para você?
Como eu estava dizendo, a agenda para educação do governo Lula foi completa: nós trabalhamos em educação ambiental, educação para direitos humanos, educação prisional – fala-se muito pouco disso. Vou te dar dois exemplos: remissão de pena por estudo, projeto do governo Lula, aprovado no governo Dilma; Enem nos presídios para acesso à educação superior foi projeto do governo Lula. Muitos detentos passaram a frequentar a universidade com base no Enem. Educação inclusiva: os beneficiários do BPC [Benefício de Prestação Continuada] não são apenas os idosos, as pessoas com deficiência de baixa renda também têm acesso. Mandamos assistentes sociais para todas as casas dos beneficiários para levá-los para a escola. Foram 400 mil estudantes com deficiência que passaram a estudar na escola por causa dessa ação. Direitos humanos era uma dessas agendas. Nós operamos uma pauta muito abrangente.
As escolas estão preparadas para a inclusão?
Por incrível que pareça, as escolas públicas são mais preparadas. O que padece um pouco é que você precisa ir criando a infraestrutura na medida em que a demanda aumentou. O corpo docente tem de se adaptar a essa realidade. Agora, o bem que isso faz para a comunidade escolar é grande. É óbvio que tem aquele que vai dizer que traz problemas. Eu acho que traz desafios. Mas sendo membro da comunidade, o direito é igual. Sempre fui defensor de que a criança com deficiência tivesse oportunidade de frequentar uma escola especial. Mas pelo menos em um turno, ela tem de estar com todas as crianças. Faz parte do projeto político-pedagógico de uma escola ser inclusiva. Eu me lembro de um debate que tive com um defensor das escolas especiais em que falei: mas é direito dos meus filhos conviver com a pessoa que tem deficiência, não só dela. Meu filho tem de saber o que é o mundo na escola, saber que tem gente surda, cega, cadeirante. Como é que faz? Não tem como se humanizar sem o convívio com a diferença.
E a questão da participação popular?
Nós criamos e revitalizamos os Conselhos que estavam depauperados na prefeitura. As Conferências Nacionais também foram muito importantes no governo federal. Ativar a cidadania é uma obrigação do poder democrático. A pessoa devia fazer isso até por egoísmo, porque a participação minimiza a chance de erro. Você erra menos ouvindo mais.
Você foi muito criticado por criar o programa de capacitação de professores contra a homofobia. Surgiram fake news como o kit gay etc., que até te atrapalharam nas eleições. Continua achando válida a iniciativa?
Você tem de preparar o professor para a realidade social, porque não é fácil lidar com o bullying na escola – e o bullying é contra negros, pessoas com deficiência, gays, muitas vezes contra mulheres, gordos… Às vezes a criança está com um problema fora da escola. A criança abusada sexualmente muitas vezes tem seu desempenho escolar prejudicado. O professor tem de estar preparado para ler sinais de que eventualmente a criança pode estar com problemas e encaminhar para um psicólogo. É dever da escola. Isso é a favor da escola e dos valores humanos e não contra. Não temos uma sociedade homogênea. Quanto às fake news, se eles não inventassem isso, iriam inventar outra coisa. Inventaram cada uma a meu respeito… Inventaram que eu tinha uma Ferrari! Que eu tinha um relógio de 500 mil reais. Que eu estuprei uma menina de 11 anos.
(Foto Marcus Steinmeyer)
“Os tucanos eram neoliberais que faziam concessão ao obscurantismo, Bolsonaro é um obscurantista que faz concessão ao neoliberalismo” (Foto: Marcus Steinmeyer)
O que para você define uma educação efetivamente republicana?
A democracia moderna não é como a antiga. A moderna tem antídotos contra a tirania da maioria. Justamente para preservar as minorias, para preservar o modo de ser e de viver de pessoas que são diferentes de você. Então, se eu quero seguir o candomblé, o que o judeu, o evangélico ou o católico têm a ver com isso? Essa maneira de ver é muito moderna. Na Idade Média não era assim e não era assim mesmo nas cidades democráticas da Antiguidade. Você não tinha a ideia de preservar o diferente, as minorias, os heréticos, não havia essa cultura. Isso é fruto do desenvolvimento humano, que percebe na diferença um valor. A democracia republicana ou liberal tem esse fundamento, de que a minoria pode estar certa, inclusive. E no campo da educação isso se traduz numa concepção progressista da escola pública. A escola pública é um patrimônio da democracia republicana; é a expressão maior dessa cultura que acolhe, que dialoga, interage. Um projeto como o Escola sem Partido viola essa condição. Ele quer uniformizar as escolas. Você vai ter uma história oficial a ser contada? Não vai ter pluralidade de ideias? Não vai permitir que as pessoas formem a partir do seu juízo crítico a sua personalidade? É o que o Anísio Teixeira falava: a máquina da democracia é a escola pública.
Outra de suas ações foi a alfabetização de adultos no meio rural. Teve influência de Paulo Freire?
Olha, eu li A pedagogia do oprimido na faculdade de direito. Vim a reler agora, depois de tanto pau que ele levou. E fiquei surpreso com a grandeza do trabalho dele. É um homem que propunha a razão dialógica antes do Habermas, já nos anos 1960. O combate ao solipsismo na filosofia já estava todo no Paulo Freire. Eu até fiquei curioso para saber por que o Habermas não cita o Paulo Freire. Deveria.
E agora estão querendo destruir o Paulo Freire.
Bom, para destruir precisa conhecer. Eu duvido que esse ministro tenha lido o Paulo Freire. Eles não têm noção do que estão falando.
Além do Paulo Freire, há um desprezo claro deste governo pelas ciências humanas, as quais querem abolir. O que você acha desse movimento?
Minha tese é a seguinte: o neoliberalismo, num país tão desigual como o Brasil, só tem algum espaço na política se associado a essa agenda obscurantista. Desde a eleição do Bolsonaro, eu tenho dito: o obscurantismo é parte do projeto. E tenho que fazer aqui justiça a uma coisa: os tucanos eram neoliberais que faziam concessão ao obscurantismo, o Bolsonaro é um obscurantista que faz concessão ao neoliberalismo. Nesse sentido eles são um espelho invertido. Tanto é que os tucanos estão na base aliada do governo Bolsonaro – mas mirando mais a agenda econômica do que a agenda regressiva que ele representa. Mas é um par de conceitos que se sustentam, um no outro. Então não é uma coisa que dá para descartar. Essa ideia dos militares de quererem descartar o obscurantismo de um Olavo de Carvalho é uma incompreensão de que isso faz parte de um pacote. É um todo. Esses ataques todos às artes, à ciência, à educação fazem parte do projeto que ele representa. E essa onda obscurantista já estava começando lá atrás. O Bolsonaro não é um raio em céu azul, é uma produção histórica. Esse disparate de ter o presidente mais desqualificado do mundo para um país como o Brasil não surgiu do nada. Acho que começou logo ali depois da reeleição do Lula.
Como você vê a ideia de instalar escolas militares em todas as capitais?
Olha, os colégios militares no Brasil são bons. A rede federal é boa, militar ou não. Mas as melhores escolas públicas do país são federais civis, não as militares. Então não sei por que esse fetiche pelas escolas militares. O que menos importa para esse pessoal é a evidência empírica, a realidade. Eles navegam num outro universo.
Como você avalia o Enem, que sofreu muitas críticas, mas está aí, firme?
A reforma do Enem foi das melhores coisas que eu fiz. Porque viabilizou o Sisu [Sistema de Seleção Unificada], o fim do vestibular, o menino pobre do Piauí fazer uma prova e entrar numa grande universidade, o ingresso de brasileiros em mais de vinte universidades portuguesas, que os presidiários pudessem fazer faculdade, a mobilidade dos estudantes entre os estados (que, assim, não precisam se deslocar para fazer o vestibular). Deu uma flexibilidade extraordinária para o sistema. O Sisu é das coisas mais importantes da educação superior no Brasil e ele seria impossível sem o novo Enem. Com o velho Enem, a gente conseguiu fazer o Prouni [Programa Universitário para Todos]. Mas as universidades federais não iam aderir ao velho Enem, de jeito nenhum. Foi preciso reformar o Enem, o que praticamente acabou com o vestibular na rede federal.
E o anúncio de cortes orçamentários para as universidades, escolas e bolsas de pesquisa?
Desde o Manifesto dos Pioneiros [da Educação Nova], de 1932, nós precisamos de 70 anos para chegar ao Lula e botar o patamar de investimento na educação na média dos países da OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. Ou até um pouco acima. Quer dizer, nós perdemos o século 20, que foi o século da educação no mundo, menos aqui. Começamos o século 21 bem, desse ponto de vista. Aí não completou duas décadas e aparece um sujeito dizendo que não é nada disso, propondo cortes na educação? É um contrassenso absurdo.
E o que a gente pode fazer contra isso?
O sistema vai reagir, não tenha dúvida de que ele [Bolsonaro] vai encontrar resistência. Já está encontrando. O ministro começa a dizer que não é corte, é contingenciamento, pode ser liberado. Aí fez uma chantagenzinha, disse que se aprovarem a reforma da previdência, ele libera.
Você fez algumas viagens, nas quais conversou com o pessoal do Podemos, na Espanha, e do Geringonça, em Portugal. Trouxe algumas ideias novas para a educação?
Não fui com essa missão. Mas na verdade a gente está tentando organizar uma Internacional Progressista. E vai se criar uma governança global, de personalidades, partidos, que pensem uma agenda progressista. Fala-se muito num Green New Deal, que dialogue com a questão social e a ambiental simultaneamente. Acho que tem uma nova esquerda surgindo no mundo para se contrapor a essa extrema direita. Há vários partidos brasileiros que teriam interesse numa agenda assim.

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