segunda-feira, 10 de junho de 2019

Ideologia do medo

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Ideologia do medo

Ideologia do medo
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Olavo de Carvalho: suas ideias estão para a filosofia como sua astrologia para a astrofísica (Arte Revista CULT/Reprodução YouTube)

Há pouca verdade na narrativa filosófica de Olavo de Carvalho. Seus textos, principalmente aqueles dedicados à filosofia, trazem a marca da superficial erudição do autodidata. Pouco importam, entretanto, as simplificações e os erros a respeito dos autores criticados. O público-alvo não é formado por filósofos especialistas e provavelmente sequer conhece os autores execrados. Para seus leitores, mais importante do que o texto criticado é a própria crítica, na qual podem encontrar uma explicação para seus medos. E se essa crítica vier embalada com sinais de erudição, mais sedutora ela será.
A narrativa apressada, na qual personagens da cultura filosófica são empilhados e espancados para que confessem seus pecados, constitui um dispositivo eficaz de legitimação intelectual. Contrapor a esse pensamento uma filosofia profissional, retificar o argumento, demonstrar as falhas interpretativas ou corrigir os erros factuais têm pouco valor. Não é isso o que trará ou retirará definitivamente dignidade a seu discurso. Ele tem uma dignidade própria. O valor desse discurso está em sua eficácia, em sua  capacidade de traduzir as angústias de seu público em uma narrativa eficaz.
Carvalho afirma-se orgulhoso artífice de um trabalho prometeico, original, nunca antes levado a cabo por nenhum brasileiro, cuja missão é, simplesmente, revelar a ideologia da maldade existente em um mundo grande e terrível. Sua narrativa tem como pano de fundo o declínio da civilização ocidental e dos valores cristãos a ela associados. No lançamento de O imbecil coletivo (1996), o último e mais vendido livro de sua conhecida trilogia, Carvalho expôs de modo dramático o conflito entre as figuras bíblicas do Behemoth, representação das necessidades naturais e das forças obedientes a Deus, e do Leviatã, encarnação  da infranatureza diabólica e da rebelião.
É nesse conflito entre as forças do bem e do mal que está a síntese de seu pensamento tradicionalista. Só Deus poderia vencer esse conflito, subjugando o Leviatã. Quando a humanidade recusa o salvador, essa luta culmina inevitavelmente em um confronto destrutivo. Guerras, revoluções e catástrofes acossariam a humanidade trazendo consigo a aniquilação e o medo. Uma ameaça desse porte à civilização ocidental necessita de um sacerdote supremo. Carvalho encontrou em Antonio Gramsci a encarnação desse maligno hierofante. É no início de tudo que ele se encontra, já em A nova era e a revolução cultural (1994), primeira obra daquela trilogia.
Nosso autor conhece muito pouco sobre a vida e a obra de Gramsci. Comete erros biográficos e amontoa anacronismos, divertindo o leitor informado. Refere-se a uma suposta “filha” de Gramsci, pai de apenas dois meninos, e escreve repetidas vezes que no Brasil foram publicas suas “obras completas”, o que nunca ocorreu nem aqui nem na Itália. Mas isso pouco importa. Carvalho acredita ter identificado a mente por detrás de uma conspiração cuja tropa de elite é formada por “jornalistas, cineastas, músicos, psicólogos, pedagogos infantis e conselheiros familiares”. Isso basta. Não é preciso sequer que esse exército diabólico conheça Gramsci, ele seguirá suas ideias enfeitiçado, “mesmo sem ter disto a menor consciência”. Os indivíduos são apenas o suporte dessa misteriosa estrutura.
Um conhecimento melhor da vida e da obra daquele malévolo sardo não traria nada de novo, pensa Carvalho. Em O imbecil coletivo, ele explica que inteligir é uma atividade intuitiva: “É captar, num relance, a unidade objetiva de um conjunto de dados, dispondo-os num quadro que é posto imediatamente à disposição de todas as faculdades psíquicas, da vontade, do sentimento, da imaginação, etc.” Intuído o mal, apreendido num relance, não há nada que a leitura possa acrescentar. Mas a intuição de Carvalho é muito particular. Ela é a percepção de um homem aterrorizado pelo declínio de um mundo e de suas tradições. Uma percepção que ele pode compartilhar com o homem comum. A uma suposta ideologia da maldade, Carvalho opõe uma ideologia do medo.
É preciso levar a sério as ideias de Olavo de Carvalho e seu trabalho como intelectual público. Isso não implica atribuir a essas ideias o valor de uma filosofia profissional, um valor que provavelmente o próprio autor não desejaria. As ideias de Olavo de Carvalho estão para a filosofia acadêmica assim como sua astrologia está para a astrofísica. O objetivo desse autor não é expor a verdade dos textos filosóficos e sim apresentar uma narrativa coerente e consistente que revele às pessoas comuns a origem do mal e aponte os responsáveis pelos medos que as afligem. A análise dessa narrativa escapa portanto à filosofia acadêmica. Ainda assim é preciso conhecer sua obra para não repetir seu erro. Os historiadores e sociólogos da cultura terão assim o desafio de se dedicar aos textos de Carvalho com o mesmo afinco e rigor com os quais Theodor Adorno se debruçou sobre a coluna de astrologia do Los Angeles Times para escrever As estrelas descem à Terra. Isso requer paciência e autocontrole.

Alvaro Bianchi é professor livre-docente do Departamento de Ciência Política da Unicamp e autor de O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política (Zouk, 2018)

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