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Dossiê | A educação diante da catástrofe
Edição do mês(Foto: Reprodução)
O presente dossiê pretende colocar a educação brasileira na borda de um precipício, não para convidá-la a espatifar-se contra o abismo – como querem atualmente todos aqueles que, por estultícia ou má-fé, lidam com ela com absoluta falta de compreensão – e, sim, para vê-la disposta a criar asas e voar – como desejam mulheres e homens vocacionados para o verdadeiro exercício da vida pública. Daí o caráter ambivalente que vem recobrindo a questão educacional no país já há muito tempo, agravado recentemente por um contexto sociocultural em que a ignorância, o anti-intelectualismo e o retrocesso transformaram-se em valores políticos ativos, que têm interferido nas mais variadas esferas institucionais e feito grandes estragos nelas. De um lado, a situação é caótica – fruto do descaso das autoridades brasileiras no trato de assunto que subsidiou as grandes transformações civilizatórias por que já passaram inúmeras nações mundo afora –, de outro, há todo um mundo novo, promissor, por ser construído. Se concordarmos com Chesterton, para quem a educação é “simplesmente a alma de uma sociedade a passar de uma geração para outra”, haveremos todos nós brasileiros de nos sentirmos como o alferes Jacobina do conto de Machado de Assis, cuja alma refletida no espelho era “uma figura vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. Mas temos todas as condições de mudar esse quadro, como apontam os textos a seguir. O que falte talvez seja somente vontade política.
A socióloga Sonia M.P. Kruppa traça um amplo painel da escola pública brasileira, marcada desde sempre por posições políticas em disputa. Neste ano de 2019, adverte a também pedagoga: “os limites e violações aos direitos sociais e à educação e a luta por sua defesa e ampliação estão novamente nas ruas.”
A socióloga Maria Victoria de Mesquita Benevides defende o projeto de educação em direitos humanos, presidido pela preocupação de respeitar o indivíduo em sua dignidade e em sua especificidade. “É uma formação ética, que visa atingir tanto a razão quanto a emoção, ou seja, conquistar corações e mentes. Não é uma disciplina, mas um tema transversal”. O texto seguinte, de Helena Singer, priva daquele tipo de otimismo consequente, responsável, de quem constata a gravidade do problema, mas não esmorece diante dele. A educadora evoca a sólida tradição brasileira da educação popular e comunitária que, segundo ela, deveria inspirar as políticas públicas educacionais para fortalecer a escola e fomentar a multiplicação de organizações de igual teor. A pedagoga Flávia Schilling discute o conceito de escola justa, lugar em que cabe tanto o “tudo é um pouco dolorido hoje” de um dos professores entrevistados por ela como os sujeitos livres que medeiam conteúdos e práticas, podendo atribuir-lhes novos sentidos. O educador Hubert Alquéres enxerga a educação como um exercício de possibilidades que ainda não tomaram forma na vida social e estão impregnadas de futuro. “Às habilidades cognitivas tradicionais agrega-se o letramento digital, sem o qual não se pode falar de educação do século 21. Mais do que isto: a escola da nova era terá de ter em sua alma a cultura digital”, defende enfaticamente ele. Por fim, o sociólogo José Vicente, fundador e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, mostra os mecanismos de uma educação moldada sobre a plataforma de uma sociedade escravocrata, racista e discriminadora por natureza, onde o negro historicamente não teve “vez nem voz”. O filósofo Ernani Chaves, em texto publicado no site da Revista CULT, trata da relação entre democracia e educação, defendendo o diálogo constante entre as filosofias e as ciências, essencial para o desenvolvimento científico, tecnológico e social de uma nação.
Vigilantes diante das intensas e constantes ameaças sofridas pela educação pública do país, os artigos aqui reunidos apontam para o caráter catastrófico do problema, mas não no sentido do senso comum. Antes, o desastre a que se alude reveste-se do sentido de katastrophé, como entendido na tragédia grega – aquele acontecimento funesto e decisivo que provoca o desenlace da ação, precipitando o herói em um movimento descensional, sim, mas a partir do qual ele adquire o conhecimento de si mesmo e dos mecanismos do mundo.
O flagelo está aí, mas o processo educacional encontra sua verdadeira grandeza naquilo que exprime sua natureza: a remoção dos obstáculos que impedem o desenvolvimento das pessoas, individual e coletivamente.
Welington Andrade é doutor em Literatura Brasileira pela USP e diretor da Faculdade Cásper Líbero
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