terça-feira, 18 de junho de 2019

A Amazônia se aproxima do ponto de ruptura, diz Carlos Nobre


https://www.nationalgeographicbrasil.com/entrevista/2019/01/entrevista-carlos-nobre-clima-amazonia-bolsonaro-governo?fbclid=IwAR11YCPTKVuXR3fho6IRXqWs1LxhIXO8k_OiClxAiRsUe93xqtpzW82EVmE

A Amazônia se aproxima do ponto de ruptura, diz Carlos Nobre

O climatologista reflete sobre os desafios de preservação da floresta e a necessidade de uma agropecuária de carbono neutroterça-feira, 8 de janeiro


Plantações de soja e milho avançam sobre o território da floresta em Sinop, Mato Grosso. Se o aquecimento na Amazônia passar de 4ºC – já chegou a 1,5ºC –, a floresta pode se transformar em uma savana.

Polêmicas em relação ao meio ambiente marcaram a campanha, a transição e o início do governo do presidente eleito, Jair Bolsonaro. Apoiado pela Frente Parlamentar da Agropecuária, o capitão reformado do Exército questionou os compromissos estabelecidos pelo Acordo de Paris e alinhou-se a um discurso negacionista reforçado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O argumento é de preservar a “soberania nacional”, ao mesmo tempo em que se atribui um “viés ideológico” a instituições ambientais independentes, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Além, é claro, da desistência de sediar a Conferência do Clima da ONU em 2019, a COP-25.
Após ser indicado para ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles declarou que o aquecimento global é uma questão secundária. Em 19 de dezembro de 2018, a Justiça de São Paulo condenou Salles por improbidade administrativa, acusado pelo Ministério Público de fraudar o Plano de Manejo de Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, em 2016, quando era secretário do Meio Ambiente do estado. Já o novo chanceler Ernesto Araújo acredita que os estudos e a política em relação às mudanças climáticas são influenciados por um “marxismo cultural".
Bolsonaro colocou a comunidade ambiental em alerta já no primeiro dia de governo. Em decreto publicado no Diário Oficial da União, o presidente encarregou o Ministério da Agricultura de identificar, delimitar e demarcar terras indígenas (antes sob responsabilidade da Fundação Nacional do Índio, Funai) e quilombolas (até então feitas pela Fundação Palmares).
A pasta também controlará os licenciamentos ambientais, as políticas de reforma agrária e o Serviço Florestal Brasileiro, órgão com fins, por exemplo, de recuperar vegetações nativas e auxiliar processos de concessão das matas.
Carlos Nobre participa do seminário Prontos para o tempo, preparados para o clima. O climatologista alerta que, caso a lei do "Velho Oeste" volte ao Brasil – com invasão de terras indígenas e públicas–, o meio ambiente pode ser muito prejudicado.
Tais funções serão realizadas pela Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, sob o controle de Luiz Antônio Nabhan Garcia. Ele é presidente da União Democrática Ruralista (UDR) e, ao Estadão, avisou que demarcações serão “passadas a limpo”, a exemplo da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
“Se a ideia de desmatar o quanto quiser e de invadir terras públicas prosperar, eu vejo com grande preocupação a questão do respeito com os compromissos ambientais”, observa o climatologista Carlos Nobre. O cientista paulistano pesquisa mudanças climáticas e Amazônia há mais de quatro décadas.
Em 1975, após se formar em engenharia eletrônica no Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA), Nobre mudou-se para Manaus para trabalhar no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Entre 1977 e 1982, fez doutorado em meteorologia no Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), orientado pelo professor Jeff Charney, pioneiro nas pesquisas sobre o aquecimento global. Após os estudos, Nobre tornou-se cientista sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Em paralelo aos trabalhos no Inpe, Nobre deu sequência às pesquisas acadêmicas. Em 1988, como pesquisador da Universidade de Maryland, realizou um estudo inédito sobre os impactos climáticos dos desmatamentos na Amazônia. Em 1991, levantou a possibilidade de a Amazônia deixar de ser floresta para virar uma savana, em um cenário de alta no desmatamento e na temperatura global.
Em 2007, Nobre foi um dos autores do relatório sobre o aquecimento global do Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), agraciado com o prêmio Nobel da Paz. Entre outras funções, Nobre é membro da Academia Brasileira de Ciências e foi secretário nacional do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Desde maio de 2018, tornou-se pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, cujo objetivo é estabelecer caminhos de desenvolvimento sustentável para o Brasil até 2050.
Na entrevista a seguir, Nobre analisa a postura brasileira no âmbito ambiental; os compromissos do Acordo de Paris; o aumento do risco de savanização da Amazônia; a influência da bancada ruralista no Congresso para afrouxar legislações ambientais; e seu projeto de desenvolvimento sustentável batizado de Terceira Via Amazônica.

“Se a ideia de desmatar o quanto quiser e de invadir terras públicas prosperar, eu vejo com grande preocupação a questão do respeito com os compromissos ambientais.”

POR CARLOS NOBRE
No final dos anos 1970, o aquecimento global entrou em pauta na comunidade científica. Desde então, qual tem sido o papel do Brasil?
O Brasil tem uma posição “esquizofrênica”. Diplomaticamente, possui um papel muito importante desde que hospedou a Rio-92. Em 1997, o país propôs o mecanismo de desenvolvimento limpo no Protocolo de Kyoto, que teve efeito a partir de 2005, quando assinado pelos países responsáveis por 55% das emissões mundiais. Depois, hospedou a Rio+20. Hoje, é o país com as mais ambiciosas metas de redução de emissões colocadas em 2015 no Acordo de Paris. No entanto, da Rio-92 até 2005, apresentava uma postura interna muito atrasada, com o propósito de expansão indefinida e irrefreável da fronteira agrícola e do desmatamento.
Na questão dos recursos fósseis, a contradição continua até hoje. Ao avaliar o grande potencial das reservas do pré-sal, o Brasil parte para uma política de uso do combustível fóssil de maneira muito mais intensiva, enquanto diminui a velocidade com que substitui a gasolina pelo bioetanol. Por outro lado, em 2004, o país lançou como política pública o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal, o PPCDAm. Seu enorme impacto talvez seja o que mais projetou o Brasil no cenário político e diplomático mundial em muitas décadas. Com a redução do desmatamento em mais de 70%, o Brasil se tornou um modelo para todos os países tropicais e foi seguido no restante dos países da Amazônia, na África e no Sudeste Asiático.
Apesar disso, nos últimos anos estacionamos com as quedas do desmatamento na Amazônia e no Cerrado. Felizmente elas não atingiram os níveis absurdos de 2005, mas ainda mostraram aumento. Tínhamos alcançado um número de 4.500 km2 desmatados na Amazônia, porém já voltamos para quase 8.000 km2 de derrubadas. Portanto, não cumprimos a nossa meta estabelecida em lei em 2010, que as limitavam a 3.900 km2 na Amazônia.
UMA NOVA ESPÉCIE É DESCOBERTA POR DIA NA REGIÃO DA AMAZÔNIA
Estudo feito pela WWF e o Instituto Mamirauá, relatou que 381 novas espécies foram encontradas entre 2014 e 2015.
Em 1988, o senhor analisou de forma pioneira os impactos climáticos do desmatamento na Amazônia. Em 1991, levantou a hipótese da savanização deste bioma. Alguns impactos previstos naquela época já foram sentidos pela floresta?
Nosso conhecimento avançou muito mundialmente. Quando produzi os primeiros estudos, entre 1988 e 1991, aquilo era uma hipótese. Naquela época, os desmatamentos na Amazônia brasileira estavam na faixa de 8%, 9%. Hoje, chegaram a 20%. A hipótese era de que, se a floresta toda fosse desmatada, aconteceria a savanização. Agora, já temos algumas suspeitas de que o processo esteja em curso. O principal fator de preocupação é o aumento da duração da estação seca no sul e no sudeste da Amazônia. Nos últimos 30 anos, a estação seca está em média seis dias mais longa por década. A mais duradoura passou de meio mês. Se continuar assim, aquela região acabará virando uma savana bem degradada.
Alguns lugares do Cerrado têm o mesmo nível de chuva da região de Santarém, na Amazônia – anualmente, um total de 1.800 mm. Se chove o mesmo volume, por que em um lugar se tem floresta e no outro, cerrado? Na região de Santarém a chuva é bem distribuída o ano todo e a estação seca é muito curta. No Cerrado, a precipitação é muito concentrada na estação chuvosa, e depois essas regiões passam por três, quatro meses de chuva zero, enquanto em Santarém chove 80, 100 mm na estação seca. Essa é a grande diferença. Estudos de ecologia começam a mostrar um aumento da mortalidade de algumas espécies de árvores. Então, estamos realmente muito próximos desse ponto de ruptura.
Com nossa política do uso da terra no Brasil, podemos evitar dois dos três fatores que levam à savanização. Primeiro, temos que zerar o desmatamento rapidamente. Na COP-24 na Polônia, o grupo do qual faço parte, chamado Coalizão Brasil, lançou um documento mostrando que podemos zerar o desmatamento em todos os biomas, por meio de uma agricultura muito mais produtiva. Segundo ponto: reduzir o uso do fogo na agricultura, que tem aumentado o risco da savanização. Temos visto muito mais incêndios florestais hoje do que dez, 20 anos atrás. O terceiro fator está fora do nosso controle: o aquecimento global. Mesmo se reduzirmos a zero as emissões do Brasil, ainda dependemos que o resto do mundo faça o mesmo.
Nos nossos cálculos, se o aquecimento na Amazônia passar de 4ºC – já chegou a 1,5ºC –, teremos essa grande mudança do bioma para a savana. Seria um caso extremo, no qual as emissões continuariam como estão por 40, 50 anos. Recentemente, escrevemos um alerta na Science Advances de que não deveríamos deixar o desmatamento passar de 20%, 25% na Bacia Amazônica como um todo. Já chegou a 17% na internacional; na parte brasileira, a 20%.
Fumaça da queima de árvores encobre trecho da floresta Amazônica no Mato Grosso. "Infelizmente, temos um setor numericamente expressivo que ainda possui uma visão de expansão continuada da fronteira agrícola, sobretudo da pecuária. ", diz Carlos Nobre.
Como a Amazônia produz aproximadamente metade das próprias chuvas, fator essencial para a conservação do bioma?
Por dois fatores importantes. Durante a estação que chove menos, a gramínea [vegetação típica das pastagens] diminui bastante sua vapotranspiração, ou seja, o vapor de água lançado para a atmosfera cai pela metade. Já a floresta acessa aquela água que caiu durante a estação chuvosa e foi para o fundo, por meio das raízes profundas. Há décadas observamos que as florestas transpiram mais na estação seca do que na chuvosa. E o fluxo de vapor d’água é muito importante para contribuir para a formação de chuva.
Outro fator importante é que a floresta tem uma superfície bem rugosa para o fluxo de vento. O topo da gramínea não é homogêneo, portanto o vento também sobe e desce, mas com variação muito pequena. A floresta tem uma irregularidade da superfície maior, que chamamos de rugosidade. O vento não consegue ficar horizontal. Passa por cima de uma árvore muito alta, depois cai. Isso gera muita turbulência com a superfície, que mistura o ar e facilita a transpiração e a diminuição da temperatura. O sol aqueceu o topo, os galhos, as folhas de uma árvore. O vento pega aquele ar quente e joga para cima. Aí vem um ar um pouco mais frio, que será aquecido de novo.
Se colocar uma floresta e uma pastagem na Amazônia, lado a lado, com a mesma chuva e o mesmo clima, a temperatura máxima da floresta será de 2ºC a 3ºC menor que a da pastagem. E a evaporação da floresta será de 30% a 50% superior. Essas fontes geram as chuvas principalmente na estação seca. São precipitações locais, de 2 mm a 5 mm, mas muito frequentes e importantes para a manutenção da floresta.
Que impactos esse ponto de inflexão traria não apenas para a Amazônia, mas para o Brasil?
O ponto de ruptura para a savanização da Amazônia não aconteceria da noite para o dia, mas de uma década a outra. Estimamos que, uma vez ultrapassado o limite do desmatamento, leva-se entre 20 e 50 anos para ocorrer essa substituição. E a savana virá de forma irreversível, porque será o bioma em equilíbrio para o novo clima. Ao diminuir as chuvas locais, reduzirá também a vazão dos rios.
Em um total desmatamento da Amazônia, ou seja, na substituição de floresta por pastagem, há boas evidências de que haveria uma alteração das chuvas no inverno no sul da Bacia do Prata, no sul do Paraguai e do Uruguai, no sul do Brasil e no centro-leste da Argentina. Nessas regiões, há uma correlação de fluxo do vapor d’água que sai da Amazônia e segue ao sul, paralelo aos Andes, e abastece os sistemas de chuva.
Ainda não sabemos o impacto no Sudeste. Durante o verão, temos uma estação chuvosa muito pronunciada, sendo que 65% do vapor d’água vem do Atlântico. Uma parte menor vem da Amazônia. Pode até ter impacto, porque a mudança das chuvas da Amazônia, com o desmatamento, altera as circulações tropicais. O efeito nessa relação seria menor, mas pode existir, porque as chuvas de verão diminuiriam. Mas ainda há incerteza científica, pois os modelos computacionais não concordam totalmente. Precisamos avançar nesse conhecimento científico.

“Devemos nos tornar muito mais rigorosos em exigir nossos direitos. Se houver movimentos no Congresso para mudar a legislação ambiental e enfraquecer a regulamentação que torna ilegal desmatamentos e queimadas, a população tem que reagir.”

POR CARLOS NOBRE
Como o senhor observa os compromissos assumidos no Acordo de Paris mundialmente, assim como especificamente os do Brasil?
Primeiro, os compromissos até 2030 levariam o planeta a aumentar sua temperatura na faixa de 2,8ºC a 3,3ºC até o final do século, e continuaria subindo. As metas estão muito longe de garantir que ficaremos dentro dos 2ºC, muito menos de 1,5ºC. Alguns países estão nas trajetórias das contribuições nacionalmente determinadas, inclusive os Estados Unidos. Por mais que o presidente Donald Trump tenha ameaçado tirar o país do Acordo de Paris, as emissões americanas diminuíram em 2017 na mesma taxa dos últimos dez anos e estudos preliminares afirmam que a redução continuou em 2018.
As metas do Brasil para 2025 e 2030 são as mais ambiciosas entre os países em desenvolvimento: até 2025, 37% de redução das emissões em relação a 2005 e 43% de redução até 2030. Estados Unidos, China (a maior emissora) e Índia, a terceira, colocaram metas relativas. Até 2030, apenas prometem parar o aumento das emissões.
Enquanto os desmatamentos despencavam, o Brasil praticamente garantia sua trajetória correta. Mas depois de 2014 os desmatamentos estacionaram e, nos últimos anos, voltaram a aumentar. Já as emissões por queima de combustíveis fósseis aumentaram um pouco. Em 2014 e 2015, as secas interromperam a operação de muitas hidrelétricas, então as termelétricas entraram em máxima potência. As usinas eólicas têm se inserido muito rapidamente, mas ainda em um percentual pequeno no quadro de energia total – nem 10% da eletricidade. Já é importante, mas não o suficiente para garantir que as emissões provocadas pelos setores de energia e transportes sinalizassem uma tendência de queda.
Os desafios são maiores em outras áreas, como a redução das emissões na agricultura. A boa notícia é que elas vêm subindo em uma proporção menor do que o aumento do PIB agrícola. Em outras palavras, o setor econômico agropecuário está ficando mais eficiente, emite menos para produzir a mesma quantidade de produtos. Então, o Brasil pode cumprir seus compromissos até 2025, 2030? Pode, se reduzir drasticamente os desmatamentos.
No discurso de campanha, o presidente eleito Jair Bolsonaro sinalizava tirar o país do Acordo de Paris, pois, na opinião dele, os compromissos iam contra a “soberania nacional”. Que impactos sociais, ambientais e econômicos uma possível saída do Brasil do Acordo de Paris poderia trazer?
Olha, de fato essa possibilidade já foi descartada pela equipe do novo governo. Mas me pergunto se haverá alguma vacilação do governo para atingir as metas. Nos Estados Unidos, a vacilação do presidente Trump não teve muito impacto, porque lá o principal fator de emissão é a queima de combustíveis fósseis (80%). Nos EUA, já começou uma onda muito forte de substituição por fontes renováveis – eólica e solar. É um movimento enorme na economia americana, que gera centenas de milhares de empregos por ano e os preços são competitivos. Liderados pela Califórnia e por Nova York, 17 estados americanos assinaram compromissos rigorosos.
No Brasil é diferente, porque aqui 65% das emissões vêm de desmatamentos e agricultura. Então, temos que reduzir os desmatamentos e tornar nossa agricultura mais neutra. Se houver sinalização de que o “Velho Oeste” voltará a imperar no Brasil, se a ideia de desmatar o quanto quiser e de invadir terras públicas prosperar, eu vejo com grande preocupação a questão do respeito aos compromissos ambientais.
É lógico que o governo federal é muito importante para isso, mas temos instituições independentes. Se o Brasil quiser alguma perspectiva de melhora nos próximos anos e décadas, precisa respeitar a lei, a partir do Ministério Público, das atividades da Polícia Federal desbaratando quadrilhas, crime organizado e corrupção em todos os níveis (empresarial, governamental), que estão na raiz da invasão de terras públicas, do desmatamento, do roubo de madeira. Então, independente do presidente, do governo e dos ministros, temos que observar que o Brasil já adquiriu certa estatura de órgãos independentes que realizam sua missão de acordo com o que reza a Constituição.
E dependemos muito da população. Devemos nos tornar muito mais rigorosos em exigir nossos direitos. Se houver movimentos no Congresso para mudar a legislação ambiental e enfraquecer a regulamentação que torna ilegal desmatamentos e queimadas, a população tem que reagir. Se os deputados não seguirem a vontade da maioria, o que é essencial em uma democracia, a população não só não deve reelegê-los daqui a quatro anos, mas também tem que cobrar. Isso é muito importante e não tem ideologia. Não é uma questão ideológica, de direita, de esquerda, de centro… É uma vontade muito manifesta da população brasileira que o Congresso tem que respeitar.
O ministro do Meio Ambiente lançou recentemente os números do desmatamento em 2017, mostrando um aumento de quase 14% em relação ao período anterior. Ele falou que quase todo aquele desmatamento era ilegal, sem autorização nem em áreas onde a derrubada é permitida por lei. Quer dizer, existe um clima de grande ilegalidade por trás dos desmatamentos e das queimadas, e é isso que realmente temos que combater.
O governo de transição tem mostrado ceticismo em relação às mudanças climáticas. Por exemplo, o futuro chanceler Ernesto Araújo acredita que o aquecimento global é um complô global marxista. O que o senhor pensa sobre esse cenário?
A preocupação existe, mas não é nova. Essas tendências de fato começaram com a luta política que a bancada ruralista do Congresso iniciou em 2010, 2011, quando fez várias moções para mudar o Código Florestal, alterado em 2012. É um movimento para enfraquecer controles de legislação ambiental.
A maior preocupação que tenho é o fato de que a lei, com o novo Código Florestal, perdoou a ilegalidade de todos os desmatamentos até julho de 2008. Se de tempos em tempos, de dez em dez anos, passar uma lei que torne legal um desmatamento originariamente feito de forma ilegal, isso transmite para o setor agressivo, conservador, atrasado da agropecuária a noção de que não existe legislação. Que eles podem invadir terra pública, que podem desmatar, que podem roubar madeira. Que um dia aquilo tudo será perdoado, as multas irão desaparecer, as terras serão legalizadas… Ou seja, é uma sinalização de que não é importante nem necessário acompanhar o Código Florestal de hoje, que ainda é rigoroso em muitos aspectos. Ninguém interpretou ainda qual a força dessa bancada no novo Congresso, mas ela tem sido historicamente muito forte no Brasil. É uma fraqueza da democracia, em um país em que as leis têm uma duração curta e são modificadas por interesses de poderosos política e economicamente.
É importante dizer que o setor moderno da agricultura e da pecuária já se coloca fortemente contra o avanço do desmatamento e das queimadas, porque já se deu conta de que isso é prejudicial para os próprios negócios. Não só no sentido de diminuir a atratividade dos produtos brasileiros em mercados ambientalmente rigorosos, como o europeu, mas também porque manter o máximo possível de biomas originais traz benéficos para a produção agrícola e pecuária.
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tem experimentos recentes que mostram um enorme aumento da produtividade nos sistemas chamados “integração lavoura-pecuária-floresta”. Quando se coloca um sombreamento, o gado produz muito mais leite e muito mais carne. Isso já era algo conhecido, mas agora finalmente começa a ser disseminado entre os pecuaristas e agricultores do setor moderno, que escuta a ciência e a tecnologia.
Infelizmente, temos um setor numericamente expressivo que ainda possui uma visão de expansão continuada da fronteira agrícola, sobretudo da pecuária. Estão muito mais preocupados com a posse da terra do que com uma visão empresarial de produtividade. É um pouco daquela mentalidade da colonização que ocorreu nos Estados Unidos, marcada pela força da violência, das armas, a expulsão das comunidades indígenas que eram as reais proprietárias da terra. Nesse cenário, quadrilhas criminosas tomam terras públicas e depois as vendem a pecuaristas.
O que ainda precisa mudar para impedir o desmatamento em áreas já protegidas?
Ainda temos na Amazônia algo em torno de 600 mil e 800 mil km2 de terras públicas. É importante dar uma destinação para essas áreas, com a criação de reservas protegidas e florestas nacionais, por exemplo. Caso contrário, elas se tornam alvos da grilagem, que também ocorre em áreas de proteção e reservas indígenas. A razão do sucesso da redução do desmatamento em mais de 70%, entre 2005 e 2014, é uma rigorosa política de controle, desbaratamento e desmembramento das quadrilhas organizadas responsáveis pelo roubo de madeira e pela grilagem em terras públicas. Acima de 70% dos desmatamentos são ilegais e muitos estão associados a organizações criminosas. Também precisamos dar mais ênfase na proteção das áreas já existentes, que correspondem a 50% da Amazônia brasileira, seja como áreas protegidas, reservas indígenas ou de desenvolvimento sustentável.

“Os ativos biológicos na Amazônia são muito superiores do que se substituíssem a floresta por pastagem para a pecuária, por grãos para a agricultura ou por extração de minérios.”

POR CARLOS NOBRE
O World Resources Institute aponta que a agropecuária brasileira é responsável por 1% de todos gases de efeito estufa emitidos no mundo. Que fatores tornam essa prática tão danosa ao meio ambiente?
Esse cálculo é só da pecuária, não inclui o desmatamento. O boi, por exemplo, processa a gramínea no pré-estômago. As reações químicas de processamento da matéria orgânica geram metano e o boi arrota esse gás, o que representa a maior parte das emissões da pecuária. Existem dietas com suplementos alimentares que diminuem a produção de metano, mas não a elimina.
A partir de vários estudos, a Embrapa patenteou a “carne carbono neutro”. Você maneja a pastagem de maneira que ela absorva o carbono no solo. A gramínea cresce, as raízes também. Na estação seca as raízes morrem e aquele carbono permanece no solo. Segundo a Embrapa, no pasto super manejado há entre 2,6 a 3 cabeças de gados por hectare, enquanto a agregação de carbono ao solo é equivalente a emissão de metano de ao menos 2,6 cabeças. A ocupação média da pecuária brasileira hoje é de 1,3 cabeças de gado por hectare e no total temos 215, 216 milhões de cabeças em 1,8 milhão de km². O Ministério da Agricultura supõe que 10 milhões de pastagens já estejam mudando para esses sistemas. Se o comportamento do consumidor seguir nessa direção, poderemos ter uma pecuária muito mais produtiva e que emite muito menos.
A Embrapa calcula que, até 2025, seja possível aumentar a produção de proteína animal em 35% e, ao mesmo tempo, reduzir em 25% a área de pecuária no Brasil. Essa redução de 450 mil km² – uma cidade de São Paulo e meia – seria muito importante não só para a agropecuária, mas sobretudo para que o país cumpra a meta de restaurar 12 milhões de hectares de floresta [estabelecida no Acordo de Paris].
Qual é a ideia do seu projeto, chamado Terceira Via Amazônica?
Esse é um projeto que eu, o Ismael [irmão de Nobre, biólogo que integra a equipe de transição do presidente eleito] e outras pessoas estamos liderando. Pensando em um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, seria uma economia de floresta em pé, na qual o valor maior são os produtos da biodiversidade. Pega o exemplo do açaí, um produto que há 20 anos não era nada e hoje já significa US$ 1,5 bilhão para a economia do bioma. Então, estamos propondo a Terceira Via Amazônica, ou Amazônia 4.0, número que faz referência a utilização das tecnologias modernas da quarta revolução industrial.
Como garantir que ocorra um desenvolvimento sustentável sem ameaçar nem degradar o meio ambiente?
Os ativos biológicos na Amazônia são muito superiores do que se substituíssem a floresta por pastagem para a pecuária, por grãos para a agricultura ou por extração de minérios. Mas, para isso, precisamos realmente fazer as novas tecnologias chegarem à Amazônia e adicionarem valor às cadeias produtivas. Eu dei o exemplo do açaí porque já é uma realidade, mas levantamos uma lista com mais de mil produtos com potencial, como a castanha, o guaraná, a andiroba, a copaíba, o pau-rosa. Nossa proposta também é muito preocupada com o bem-estar e a prosperidade das populações amazônicas. Não é como a mineração, em que apenas se tira o valor da Amazônia e o leva para outro lugar. Outro setor do nosso projeto é a alta tecnologia biológica. Queremos capacitar populações para que elas próprias façam o genoma das espécies que dominam, com base no conhecimento tradicional. Fariam o genoma de dezenas de milhares de espécies, e isso no futuro teria um enorme potencial econômico a partir dos recursos biológicos e genéticos.


segunda-feira, 10 de junho de 2019

Dossiê | A educação diante da catástrofe


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Dossiê | A educação diante da catástrofe

Edição do mês
Dossiê | A educação diante da catástrofe
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(Foto: Reprodução)

presente dossiê pretende colocar a educação brasileira na borda de um precipício, não para convidá-la a espatifar-se contra o abismo – como querem atualmente todos aqueles que, por estultícia ou má-fé, lidam com ela com absoluta falta de compreensão – e, sim, para vê-la disposta a criar asas e voar – como desejam mulheres e homens vocacionados para o verdadeiro exercício da vida pública. Daí o caráter ambivalente que vem recobrindo a questão educacional no país já há muito tempo, agravado recentemente por um contexto sociocultural em que a ignorância, o anti-intelectualismo e o retrocesso transformaram-se em valores políticos ativos, que têm interferido nas mais variadas esferas institucionais e feito grandes estragos nelas. De um lado, a situação é caótica – fruto do descaso das autoridades brasileiras no trato de assunto que subsidiou as grandes transformações civilizatórias por que já passaram inúmeras nações mundo afora –, de outro, há todo um mundo novo, promissor, por ser construído. Se concordarmos com Chesterton, para quem a educação é “simplesmente a alma de uma sociedade a passar de uma geração para outra”, haveremos todos nós brasileiros de nos sentirmos como o alferes Jacobina do conto de Machado de Assis, cuja alma refletida no espelho era “uma figura vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. Mas temos todas as condições de mudar esse quadro, como apontam os textos a seguir. O que falte talvez seja somente vontade política.
A socióloga Sonia M.P. Kruppa traça um amplo painel da escola pública brasileira, marcada desde sempre por posições políticas em disputa. Neste ano de 2019, adverte a também pedagoga: “os limites e violações aos direitos sociais e à educação e a luta por sua defesa e ampliação estão novamente nas ruas.”
A socióloga Maria Victoria de Mesquita Benevides defende o projeto de educação em direitos humanos, presidido pela preocupação de respeitar o indivíduo em sua dignidade e em sua especificidade. “É uma formação ética, que visa atingir tanto a razão quanto a emoção, ou seja, conquistar corações e mentes. Não é uma disciplina, mas um tema transversal”. O texto seguinte, de Helena Singer, priva daquele tipo de otimismo consequente, responsável, de quem constata a gravidade do problema, mas não esmorece diante dele.  A educadora evoca a sólida tradição brasileira da educação popular e comunitária que, segundo ela, deveria inspirar as políticas públicas educacionais para fortalecer a escola e fomentar a multiplicação de organizações de igual teor. A pedagoga Flávia Schilling discute o conceito de escola justa, lugar em que cabe tanto o “tudo é um pouco dolorido hoje” de um dos professores entrevistados por ela como os sujeitos livres que medeiam conteúdos e práticas, podendo atribuir-lhes novos sentidos. O educador Hubert Alquéres enxerga a educação como um exercício de possibilidades que ainda não tomaram forma na vida social e estão impregnadas de futuro. “Às habilidades cognitivas tradicionais agrega-se o letramento digital, sem o qual não se pode falar de educação do século 21. Mais do que isto: a escola da nova era terá de ter em sua alma a cultura digital”, defende enfaticamente ele. Por fim, o sociólogo José Vicente, fundador e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, mostra os mecanismos de uma educação moldada sobre a plataforma de uma sociedade escravocrata, racista e discriminadora por natureza, onde o negro historicamente não teve “vez nem voz”. O filósofo Ernani Chaves, em texto publicado no site da Revista CULT, trata da relação entre democracia e educação, defendendo o diálogo constante entre as filosofias e as ciências, essencial para o desenvolvimento científico, tecnológico e social de uma nação.
Vigilantes diante das intensas e constantes ameaças sofridas pela educação pública do país, os artigos aqui reunidos apontam para o caráter catastrófico do problema, mas não no sentido do senso comum. Antes, o desastre a que se alude reveste-se do sentido de katastrophé, como entendido na tragédia grega – aquele acontecimento funesto e decisivo que provoca o desenlace da ação, precipitando o herói em um movimento descensional, sim, mas a partir do qual ele adquire o conhecimento de si mesmo e dos mecanismos do mundo.
O flagelo está aí, mas o processo educacional encontra sua verdadeira grandeza naquilo que exprime sua natureza: a remoção dos obstáculos que impedem o desenvolvimento das pessoas, individual e coletivamente.
Welington Andrade é doutor em Literatura Brasileira pela USP e diretor da Faculdade Cásper Líbero

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Haddad: "O sistema vai reagir, não tenha dúvida de que ele [Bolsonaro] vai encontrar resistência" (Foto: Marcus Steinmeyer)

Descendente direto de libaneses, Fernando Haddad tem verdadeira admiração pelo avô, um padre cristão ortodoxo famoso pela bravura durante as duas grandes guerras e a ocupação francesa. É a lembrança desse avô – que só conheceu das muitas histórias que ouviu – e a vitalidade de sua religião que o faz pensar na política como “a afirmação da vida em meio à barbárie, em meio a tudo que a nega”. O ex-prefeito de São Paulo certamente pensa o mesmo da educação, tema que lhe é tão caro e pelo qual ficou conhecido. Mesmo quando era ministro nos governos Lula e Dilma, período em que ajudou a criar o Fundeb, o Sisu, a reforma do Enem, o Fies, o Pibid e a Universidade Aberta, para citar apenas algumas das melhorias direcionadas aos estudantes do Brasil, Haddad fazia questão de preencher check-ins em hotéis com a palavra professor, hoje tão vilipendiada. Discípulo intelectual de Lukács e Marcuse, entre outros, considera que “a dialética está para as ciências humanas como a relatividade está para as ciências naturais”. Tal afirmativa seria taxada de “marxismo cultural” por aqueles que hoje promovem uma balbúrdia no campo da educação: o presidente Jair Bolsonaro, seu mentor Olavo de Carvalho e o atual nome à frente do MEC, Abraham Weintraub, autor de gafes notórias, uma delas envolvendo o escritor Franz Kafka. “O que menos importa para esse pessoal é a evidência empírica, a realidade”, analisa o ex-candidato do PT, que na última eleição presidencial recebeu 46 milhões de votos. Na conversa a seguir, realizada em sua casa modernista no bairro da Saúde, em São Paulo, ele fala, com espontaneidade e modéstia na medida, da educação que recebeu dos pais, do processo de criação e implementação dos CEUs, das leituras de autores da Escola de Frankfurt, de sua compreensão da grandeza de Paulo Freire, de sua gestão no MEC, do conceito de educação republicana e se mostra otimista quanto às possibilidades de enfrentamento da onda crescente de obscurantismo no país. “O sistema vai reagir”, garante. Hoje professor universitário e colunista da Folha de S.Paulo, continua presente nas grandes manifestações de resistência aos cortes nas universidades, escolas e bolsas de pesquisa, onde costuma ser muito aplaudido. Ecoando Darcy Ribeiro, é categórico: “O obscurantismo é parte de um projeto.”
Revista CULT – Como foi a sua educação?
Fernando Haddad – Eu sou filho de imigrante. Meu pai, no Líbano, era camponês. E meu avô era padre, não celibatário, da Igreja Ortodoxa. Meu pai, que nasceu em 1923, veio para cá aos 24 anos. Cinco anos depois, veio a abrir um comércio aqui na região da 25 de Março. Em 1981, entro na Faculdade de São Francisco, que era perto. Eu estudava de manhã e caminhava ali no calçadão para trabalhar com meu pai à tarde. Em 1985, me tornei presidente do centro acadêmico, o XI de Agosto. Ali se discutia campanha das diretas, Assembleia Nacional Constituinte, direitos humanos. Tive aula com Fabio Comparato, Gofredo Telles Jr., Dalmo Dallari, essa turma. Em virtude do meu envolvimento com a política, me interessei muito por economia e filosofia. A gente lia Adorno, Lukács, Marx, Hegel, Kant. Aí fui fazer mestrado em Economia na FEA [Faculdade de Economia e Administração da USP], sobre o colapso do socialismo real. Saiu publicado, chama O sistema soviético: relato de uma polêmica (1992). De 1990 a 96 fiz meu doutorado em Filosofia, uma discussão sobre o materialismo histórico do Habermas, com a ideia de que ele não poderia mais ser considerado um herdeiro da Escola de Frankfurt. Aí prestei o concurso para professor da USP, de ciência política. E três anos depois fui chamado pelo João Sayad para ser subsecretário da Secretaria de Finanças da cidade, na gestão da Marta [Suplicy].
Mas como era a educação em casa?
Meus pais sempre me incentivaram muito a estudar. Mas meu pai passou um período da vida com muito pouco dinheiro, então minha casa era privada de bens materiais ligados à cultura, a gente tinha dificuldade de adquirir livro, instrumento musical, disco. A minha adolescência foi muito apertada, muito mesmo. Meu pai nunca frequentou uma escola, mas minha mãe era uma normalista apaixonada por livros. A primeira coisa que me impactou na vida, nesse sentido, foi quando a gente comprou uma enciclopédia, a Delta Junior, um momento de glória para mim (risos). Já na faculdade, vieram aquelas coleções, Os Economistas, Os Pensadores. Só comecei a comprar minha própria coleção de livros no terceiro ano da faculdade. Fui muito marcado pelo História e consciência de classe, do Lukács. É tranquilamente um dos dez livros mais importantes do século passado – ou cinco. Para mim, esse e o Dialética do esclarecimento [de Adorno e Horkheimer], Minima moralia [Adorno], O homem unidimensional e o Eros e civilização, do Marcuse, são livros fundamentais.
Dos ensinamentos da Escola de Frankfurt, o que podemos aproveitar hoje, nesses tempos de obscurantismo?
Eu tinha um professor, o Gabriel Cohn, que dizia assim: “o problema do Adorno é que ele era otimista”. De fato, a gente se deixou enganar por essa normalidade do pós-Segunda Guerra, que deu margem à ideia de que as coisas estavam se arrumando. Antes de o [Francis] Fukuyama escrever o livro dele [O fim da história e o último homem, 1992], o Habermas parecia ser o sociólogo do status quo, assim como o Hegel foi o filósofo do Estado prussiano. A minha intuição é de que aquele mundo estava se decompondo, e o Habermas tinha sido pego no contrapé da história. Em 1981 começa o neoliberalismo com todas as suas consequências: desregulamentação financeira, globalização, mundialização do capital, hegemonia do capital financeiro sobre o produtivo, movimentos especulativos em todos os mercados, acionário, de hipotecas etc. Como economista, eu olhava para aquilo e pensava: o Habermas é o sociólogo de uma normalidade que acabou. E, como eu tinha lido os frankfurtianos, ficou fácil fazer uma crítica dialética ao materialismo não dialético dele. Acredito que a dialética está para as ciências humanas como a relatividade está para as ciências naturais, a física. E por isso incomoda tanto, ela tira o sono, tira o chão. Eu entendo que, de certa maneira, essa tríade Freud-Einstein-Marx forma o que chamo de pensamento pós-iluminista, porque a própria razão iluminista é colocada em suspenso diante de uma realidade natural e social que desafia o pensamento humano.
E como você e a Ana Estela partilharam a educação dos filhos?
Eu e a Estela sempre nos vimos como professores. Mesmo ocupando cargo de ministro ou prefeito, eu me registrava no check-in de hotel como professor. O Frederico fez São Francisco, defendeu o mestrado esse ano, a Carolina está na Poli da USP. Para nós sempre foi muito natural oferecer para os dois as melhores condições de desenvolvimento intelectual. Do ponto de vista ético-moral, as duas famílias vêm de uma tradição cristã muito forte. Minha mãe é kardecista, a gente lia o evangelho toda quarta-feira. Não sou praticante, mas sou fã do cristianismo ortodoxo, é de uma vitalidade extraordinária. Vou te contar uma coisa curiosa: eu me identifiquei muito com o Nietzsche, na dimensão espiritual. Pensei: esse cara conversa comigo. Ao longo do tempo, fui percebendo que o cristianismo ortodoxo tem muito do nietzschianismo, porque é um cristianismo não da comiseração, mas da exuberância. Tem uma passagem do Nietzsche em que ele fala: a caridade só é compreensível à luz do transbordamento, quando sobra – sobra de você. E sou muito fã do meu avô, passei minha vida inteira ouvindo histórias sobre a coragem dele. Ele viveu as duas grandes guerras, a ocupação da França, os conflitos religiosos. No Líbano, o padre é um guerreiro – pela vida e não pela morte. Essa afirmação da vida em meio a muito conflito é uma coisa que me diz muito, até na política. Porque para mim a política é a afirmação da vida em meio à barbárie, em meio a tudo que a nega. É o que me faz fazer política. Não tenho outra motivação.
Você tem vontade de se candidatar novamente?
O ativismo político é uma coisa inerente a mim. Conceber um bom curso, ensinar direito, ajudar a formar uma pessoa crítica, que seja capaz de formar sua própria personalidade, participar de uma assembleia, fazer um ato, escrever num jornal… para mim tudo isso são gestos políticos. Agora, disputar eleição é uma coisa que tem a ver com o contexto do momento. Eu não tenho como meta disputar eleições, mas estou disponível se for o caso. Outro dia o Lula me perguntou qual era o meu projeto pessoal e falei que eu era muito ambicioso para ter projetos pessoais (risos). Projeto pessoal é típico de quem não tem ambição real, de transformação das condições sociais. Não é o meu caso.
Um grande projeto social seu foi a concepção e implementação dos CEUs. Você pode comentar sobre isso?
Esse meu vínculo com a educação é muito antigo, até por minha mãe ser professora. Eu sempre quis ter uma escola. Era a coisa mais bacana que podia acontecer. Na gestão da Marta, apesar de estar na Secretaria de Finanças, quase por obra do acaso eu acabei me envolvendo com o projeto dos CEUs. Fui fazer um voo de helicóptero com o [deputado] Paulo Teixeira e o [então secretário municipal de Finanças] João Sayad pela periferia de São Paulo, que eu não conhecia. O Paulo queria que a gente, como gestores municipais, se sensibilizasse com aquilo de que a cidade precisava. Foi quase que uma educação política mesmo. Então eu falei para o João: a gente deveria fazer praças da República na periferia, com a Casa Caetano de Campos, a Biblioteca Mário de Andrade, o Teatro Municipal… a gente deveria abrir uma clareira e fazer o Estado chegar lá. Ele adorou. Aí fui visitar o Eugênio Bucci, que foi meu antecessor no XI de Agosto. E contei a ideia. O Angelo, irmão do Eugênio, disse: esse projeto já existe, mas nunca saiu do papel, é do Alexandre Delijaicov. Fui até ele, fizemos a maquete e a levamos até a Marta. Eu disse a ela: essa vai ser a marca da sua gestão, você vai ser conhecida por isso. Foi muito bonito.
Como ministro dos governos Lula você continuou dando muita atenção à educação básica.
O Lula foi o presidente que mais investiu em educação básica na história deste país. Ele mais do que dobrou o investimento por aluno na educação básica, através de algumas iniciativas. A primeira, óbvio, foi a criação do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], depois o piso nacional do magistério. Foi o presidente que mais expandiu a educação profissional na história da República e o que mais expandiu a educação superior e o número de creches. O Lula não pulou etapa, ele fez toda a agenda da educação; como a gente dizia: da creche à pós. Nunca disse não para o Ministério da Educação. Eu tive a honra de ter servido o presidente que fez mais pela educação, como ministro da Educação. Não é que ele fez pela básica: foi pela básica, pela superior, pela inclusiva, pela profissional, pela à distância…
Dá a impressão de que estamos dando um salto para trás: da melhor gestão em educação no país para a pior.
Ou que se anuncia como a pior. Provavelmente será, apesar de estar no começo. Ele [o presidente Bolsonaro] conseguiu trocar um péssimo ministro por um outro tão ruim quanto, mas mais ativo. Esse corta.
E a educação em direitos humanos, que é outro tema caro para você?
Como eu estava dizendo, a agenda para educação do governo Lula foi completa: nós trabalhamos em educação ambiental, educação para direitos humanos, educação prisional – fala-se muito pouco disso. Vou te dar dois exemplos: remissão de pena por estudo, projeto do governo Lula, aprovado no governo Dilma; Enem nos presídios para acesso à educação superior foi projeto do governo Lula. Muitos detentos passaram a frequentar a universidade com base no Enem. Educação inclusiva: os beneficiários do BPC [Benefício de Prestação Continuada] não são apenas os idosos, as pessoas com deficiência de baixa renda também têm acesso. Mandamos assistentes sociais para todas as casas dos beneficiários para levá-los para a escola. Foram 400 mil estudantes com deficiência que passaram a estudar na escola por causa dessa ação. Direitos humanos era uma dessas agendas. Nós operamos uma pauta muito abrangente.
As escolas estão preparadas para a inclusão?
Por incrível que pareça, as escolas públicas são mais preparadas. O que padece um pouco é que você precisa ir criando a infraestrutura na medida em que a demanda aumentou. O corpo docente tem de se adaptar a essa realidade. Agora, o bem que isso faz para a comunidade escolar é grande. É óbvio que tem aquele que vai dizer que traz problemas. Eu acho que traz desafios. Mas sendo membro da comunidade, o direito é igual. Sempre fui defensor de que a criança com deficiência tivesse oportunidade de frequentar uma escola especial. Mas pelo menos em um turno, ela tem de estar com todas as crianças. Faz parte do projeto político-pedagógico de uma escola ser inclusiva. Eu me lembro de um debate que tive com um defensor das escolas especiais em que falei: mas é direito dos meus filhos conviver com a pessoa que tem deficiência, não só dela. Meu filho tem de saber o que é o mundo na escola, saber que tem gente surda, cega, cadeirante. Como é que faz? Não tem como se humanizar sem o convívio com a diferença.
E a questão da participação popular?
Nós criamos e revitalizamos os Conselhos que estavam depauperados na prefeitura. As Conferências Nacionais também foram muito importantes no governo federal. Ativar a cidadania é uma obrigação do poder democrático. A pessoa devia fazer isso até por egoísmo, porque a participação minimiza a chance de erro. Você erra menos ouvindo mais.
Você foi muito criticado por criar o programa de capacitação de professores contra a homofobia. Surgiram fake news como o kit gay etc., que até te atrapalharam nas eleições. Continua achando válida a iniciativa?
Você tem de preparar o professor para a realidade social, porque não é fácil lidar com o bullying na escola – e o bullying é contra negros, pessoas com deficiência, gays, muitas vezes contra mulheres, gordos… Às vezes a criança está com um problema fora da escola. A criança abusada sexualmente muitas vezes tem seu desempenho escolar prejudicado. O professor tem de estar preparado para ler sinais de que eventualmente a criança pode estar com problemas e encaminhar para um psicólogo. É dever da escola. Isso é a favor da escola e dos valores humanos e não contra. Não temos uma sociedade homogênea. Quanto às fake news, se eles não inventassem isso, iriam inventar outra coisa. Inventaram cada uma a meu respeito… Inventaram que eu tinha uma Ferrari! Que eu tinha um relógio de 500 mil reais. Que eu estuprei uma menina de 11 anos.
(Foto Marcus Steinmeyer)
“Os tucanos eram neoliberais que faziam concessão ao obscurantismo, Bolsonaro é um obscurantista que faz concessão ao neoliberalismo” (Foto: Marcus Steinmeyer)
O que para você define uma educação efetivamente republicana?
A democracia moderna não é como a antiga. A moderna tem antídotos contra a tirania da maioria. Justamente para preservar as minorias, para preservar o modo de ser e de viver de pessoas que são diferentes de você. Então, se eu quero seguir o candomblé, o que o judeu, o evangélico ou o católico têm a ver com isso? Essa maneira de ver é muito moderna. Na Idade Média não era assim e não era assim mesmo nas cidades democráticas da Antiguidade. Você não tinha a ideia de preservar o diferente, as minorias, os heréticos, não havia essa cultura. Isso é fruto do desenvolvimento humano, que percebe na diferença um valor. A democracia republicana ou liberal tem esse fundamento, de que a minoria pode estar certa, inclusive. E no campo da educação isso se traduz numa concepção progressista da escola pública. A escola pública é um patrimônio da democracia republicana; é a expressão maior dessa cultura que acolhe, que dialoga, interage. Um projeto como o Escola sem Partido viola essa condição. Ele quer uniformizar as escolas. Você vai ter uma história oficial a ser contada? Não vai ter pluralidade de ideias? Não vai permitir que as pessoas formem a partir do seu juízo crítico a sua personalidade? É o que o Anísio Teixeira falava: a máquina da democracia é a escola pública.
Outra de suas ações foi a alfabetização de adultos no meio rural. Teve influência de Paulo Freire?
Olha, eu li A pedagogia do oprimido na faculdade de direito. Vim a reler agora, depois de tanto pau que ele levou. E fiquei surpreso com a grandeza do trabalho dele. É um homem que propunha a razão dialógica antes do Habermas, já nos anos 1960. O combate ao solipsismo na filosofia já estava todo no Paulo Freire. Eu até fiquei curioso para saber por que o Habermas não cita o Paulo Freire. Deveria.
E agora estão querendo destruir o Paulo Freire.
Bom, para destruir precisa conhecer. Eu duvido que esse ministro tenha lido o Paulo Freire. Eles não têm noção do que estão falando.
Além do Paulo Freire, há um desprezo claro deste governo pelas ciências humanas, as quais querem abolir. O que você acha desse movimento?
Minha tese é a seguinte: o neoliberalismo, num país tão desigual como o Brasil, só tem algum espaço na política se associado a essa agenda obscurantista. Desde a eleição do Bolsonaro, eu tenho dito: o obscurantismo é parte do projeto. E tenho que fazer aqui justiça a uma coisa: os tucanos eram neoliberais que faziam concessão ao obscurantismo, o Bolsonaro é um obscurantista que faz concessão ao neoliberalismo. Nesse sentido eles são um espelho invertido. Tanto é que os tucanos estão na base aliada do governo Bolsonaro – mas mirando mais a agenda econômica do que a agenda regressiva que ele representa. Mas é um par de conceitos que se sustentam, um no outro. Então não é uma coisa que dá para descartar. Essa ideia dos militares de quererem descartar o obscurantismo de um Olavo de Carvalho é uma incompreensão de que isso faz parte de um pacote. É um todo. Esses ataques todos às artes, à ciência, à educação fazem parte do projeto que ele representa. E essa onda obscurantista já estava começando lá atrás. O Bolsonaro não é um raio em céu azul, é uma produção histórica. Esse disparate de ter o presidente mais desqualificado do mundo para um país como o Brasil não surgiu do nada. Acho que começou logo ali depois da reeleição do Lula.
Como você vê a ideia de instalar escolas militares em todas as capitais?
Olha, os colégios militares no Brasil são bons. A rede federal é boa, militar ou não. Mas as melhores escolas públicas do país são federais civis, não as militares. Então não sei por que esse fetiche pelas escolas militares. O que menos importa para esse pessoal é a evidência empírica, a realidade. Eles navegam num outro universo.
Como você avalia o Enem, que sofreu muitas críticas, mas está aí, firme?
A reforma do Enem foi das melhores coisas que eu fiz. Porque viabilizou o Sisu [Sistema de Seleção Unificada], o fim do vestibular, o menino pobre do Piauí fazer uma prova e entrar numa grande universidade, o ingresso de brasileiros em mais de vinte universidades portuguesas, que os presidiários pudessem fazer faculdade, a mobilidade dos estudantes entre os estados (que, assim, não precisam se deslocar para fazer o vestibular). Deu uma flexibilidade extraordinária para o sistema. O Sisu é das coisas mais importantes da educação superior no Brasil e ele seria impossível sem o novo Enem. Com o velho Enem, a gente conseguiu fazer o Prouni [Programa Universitário para Todos]. Mas as universidades federais não iam aderir ao velho Enem, de jeito nenhum. Foi preciso reformar o Enem, o que praticamente acabou com o vestibular na rede federal.
E o anúncio de cortes orçamentários para as universidades, escolas e bolsas de pesquisa?
Desde o Manifesto dos Pioneiros [da Educação Nova], de 1932, nós precisamos de 70 anos para chegar ao Lula e botar o patamar de investimento na educação na média dos países da OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. Ou até um pouco acima. Quer dizer, nós perdemos o século 20, que foi o século da educação no mundo, menos aqui. Começamos o século 21 bem, desse ponto de vista. Aí não completou duas décadas e aparece um sujeito dizendo que não é nada disso, propondo cortes na educação? É um contrassenso absurdo.
E o que a gente pode fazer contra isso?
O sistema vai reagir, não tenha dúvida de que ele [Bolsonaro] vai encontrar resistência. Já está encontrando. O ministro começa a dizer que não é corte, é contingenciamento, pode ser liberado. Aí fez uma chantagenzinha, disse que se aprovarem a reforma da previdência, ele libera.
Você fez algumas viagens, nas quais conversou com o pessoal do Podemos, na Espanha, e do Geringonça, em Portugal. Trouxe algumas ideias novas para a educação?
Não fui com essa missão. Mas na verdade a gente está tentando organizar uma Internacional Progressista. E vai se criar uma governança global, de personalidades, partidos, que pensem uma agenda progressista. Fala-se muito num Green New Deal, que dialogue com a questão social e a ambiental simultaneamente. Acho que tem uma nova esquerda surgindo no mundo para se contrapor a essa extrema direita. Há vários partidos brasileiros que teriam interesse numa agenda assim.

 Criada em 2015 em Portugal, o Climáximo é uma organização de ativistas climáticos, alinhada com o Ambientalismo Radical e baseada no princí...