Entrevista de
Edgar Morin feita por Simon Blin no Jornal francês Libération em 27 de março de
2020. Disponível em: https://www.liberation.fr/debats/2020/03/27/edgar-morin-ressentir-plus-que-jamais-la-communaute-de-destins-de-toute-l-humanite_1783400
Título original: “Ressentir plus
que jamais la communauté de destins de toute l’humanité”
Título em português: Sentir mais do
que nunca a comunidade de destino de toda a humanidade
Quase centenário, o sociólogo, eterno
otimista, vê o confinamento como uma oportunidade inesperada para regenerar a
própria noção de humanismo, mas também para que cada um opere uma triagem entre
o importante e o frívolo.
Confinado, ele diz que se sentiu "psiquicamente
projetado em uma comunicação e comunhão permanentes" com o mundo ao qual
ele permanece virtualmente conectado. Ele que sempre viveu plenamente, cujo
século de existência é composto de deslocamento perpétuo e compromissos
políticos e intelectuais. Nascido em 1921, Edgar Morin, sociólogo, filósofo,
"humanólogo", diz ele, escritor mundialmente famoso, pensador de
"complexidade" com trabalhos abundantes e abrangentes (O Método é sua
principal obra), viveu a resistência, cruzou o século XX entre admiração e
revolta. Ele olha para essas duas semanas loucas que vimos o mundo inteiro
afetado pela disseminação do Coronavírus e depois o direcionamento ao
confinamento generalizado. O diretor emérito de pesquisa do CNRS, com quase um
século de idade, com otimismo inabalável e um olhar luminoso, vê neste momento
de parada planetária a oportunidade de uma "crise existencial
salutar".
“Como você vive esse momento inédito e
grave?”
Estamos
sujeitos ao confinamento físico, mas dispomos de meios para nos comunicar com
palavras que nos colocam em comunicação com os outros e com o mundo. Nesta
fase, em reação ao confinamento, nós nos abrimos, estamos mais atentos e unidos
uns aos outros. São os solitários sem telefone ou TV, e especialmente os não
confinados, ou seja, os sem-teto, muitas vezes esquecidos pelo poder e pela
mídia, que são as vítimas absolutas do confinamento. No que me diz respeito,
senti-me participando intensamente, ainda que apenas por confinamento, no destino
nacional e no cataclismo planetário. Eu me senti projetado mais do que nunca,
na incerta e desconhecida aventura de nossa espécie. Eu senti a comunidade de
destino de toda a humanidade, de maneira mais forte do que nunca.
“Como você descreveria essa crise na
história pela qual você atravessou?”
Atualmente,
estamos em uma crise tripla. A crise biológica de uma pandemia que ameaça
indiscriminadamente nossas vidas e transborda as capacidades hospitalares,
especialmente quando as políticas neoliberais as reduzem continuamente. A crise
econômica resultante das medidas restritivas adotadas contra a pandemia e que,
retardando ou interrompendo atividades produtivas, de trabalho, de transporte,
sóirão agravar se o confinamento se mantiver. A crise da civilização:
subitamente passamos de uma civilização da mobilidade para uma obrigação de
imobilidade. Vivíamos principalmente fora, no trabalho, no restaurante, no
cinema, em reuniões, em festas. Aqui somos forçados a um estilo de vida
sedentário e de privacidade. Consumimos sob a influência do consumismo, ou
seja, o vício em produtos de qualidade medíocres e virtudes ilusórias, o
estímulo ao aparentemente novo, em busca do mais, e não do melhor. O
confinamento poderia ser uma oportunidade para a desintoxicação física e
mental, que permitiria selecionar o importante e rejeitar o frívolo, o
supérfluo e o ilusório. O importante é obviamente o amor, a amizade, a solidariedade,
a irmandade, o desenvolvimento do Eu em um Nós. Nesse sentido, o confinamento
poderia dar origem a uma crise existencial salutar na qual refletiríamos sobre
o significado de nossas vidas.
“Diante da pandemia, todo o nosso
sistema foi abalado: saúde, política, economia e democracia. Seu trabalho
intelectual consistiu precisamente em pensar a complexidade e a
transdisciplinaridade.”
Essas
crises são interdependentes e se nutrem. Quanto mais uma piora, mais agrava as
outras. Se uma diminui, diminui as outras. Além disso, enquanto a epidemia não
regredir, as restrições serão cada vez mais sensíveis e a contenção será
experimentada cada vez mais como um obstáculo (de trabalhar, praticar esportes,
ir a reuniões e shows, tratar o ciático ou dentes). Mais profundamente, essa
crise é antropológica: revela-nos a face aleijada e vulnerável do formidável poder
humano, revela-nos que a unificação tecnoeconômica do globo criou ao mesmo
tempo uma interdependência generalizada, uma comunidade de destino sem
solidariedade.
“É como se o mundo não entrasse mais
nas nossas grades de análise. Os marcos intelectuais também são abalados.”
Essa
policrise deve provocar uma crise de pensamento político e do pensamento em si.
A fagocitose do político pelo econômico, a fagocitose do econômico pela
ideologia neoliberal, a fagocitose da inteligência reflexiva pelo cálculo, tudo
isso nos impede de conceber os imperativos complexos que são impostos:
combinando assim a mundialização por tudo o que é cooperativo e uma
desmundialização (para salvar territórios desertificados, autonomia alimentar e
sanitária das nações); combinar desenvolvimento (que inclui o positivo, do
individualismo) e envolvimento (que é solidariedade e comunidade); combinar
crescimento e decrescimento (determinando o que deve crescer e o que deve
diminuir). O crescimento carrega vitalidade econômica, o decrescimento carrega
salvação ecológica e despoluição generalizada. A associação do que parece
contraditório é logicamente necessária aqui.
“Nossa capacidade de "viver
juntos" é severamente testada. Esta é uma oportunidade para reconstruir um
novo humanismo, restaurar os fundamentos de uma vida comum mais unida em escala
planetária?”
Não
precisamos de um novo humanismo, precisamos de um humanismo atualizado e
regenerado. O humanismo assumiu duas faces opostas na Europa. A primeira é a da
quase-deificação do humano, dedicado ao domínio da natureza. O outro humanismo
foi formulado por Montaigne em uma frase: "Eu reconheço em todo homem meu
compatriota". Devemos abandonar o primeiro e regenerar o segundo.
A
definição do humano não pode ser limitada à ideia do indivíduo. O humano é
definido por três termos como inseparáveis um do outro como os da trindade: o humano é ao mesmo tempo um indivíduo, numa parte, um momento da espécie humana noutra parte, e também um
momento de uma sociedade. É ao mesmo
tempo individual, biológico, social. Doravante, o humanismo não pode ignorar
nosso vínculo umbilical com a vida e nosso vínculo umbilical com o universo.
Ele não pode esquecer que a natureza está tanto em nós, quanto nós na natureza.
A base intelectual do humanismo regenerado é a razão sensível e complexa. Não
apenas devemos seguir o axioma "sem razão sem paixão, sem paixão sem
razão", mas nossa razão deve estar sempre sensível a tudo que afeta os
seres humanos.
“Isso implicaria uma inversão dos
valores do mundo em que vivíamos antes do coronavírus”
O
humanismo regenerado parte conscientemente das fontes da ética, presentes em
toda a sociedade humana, que são a solidariedade e a responsabilidade.
Solidariedade cria responsabilidade e responsabilidade gera solidariedade.
Essas fontes permanecem presentes, mas parcialmente desidratadas e secas em
nossa civilização por conta do efeito do individualismo, a dominação do lucro,
a burocratização generalizada. O humanismo regenerado é essencialmente
humanismo planetário. O humanismo anterior desconhecia a interdependência
concreta entre todos os seres humanos, que se tornou uma comunidade de destino
criada pela mundialização e que está aumentando constantemente. Como a
humanidade está ameaçada por perigos mortais (multiplicação de armas nucleares,
desencadeamento de fanatismos e multiplicação de guerras civis
internacionalizadas, degradação acelerada da biosfera, crises e distúrbios de
uma economia dominada por uma especulação financeira desencadeada), o que se
acrescenta agora a pandemia viral que aumenta todos esses perigos, a vida da
espécie humana e, inseparavelmente, a da biosfera se torna um valor
prioritário.
“Essa mudança é fundamental?”
Para
que a humanidade sobreviva, ela deve se transformar. Jaspers disse logo após a
Segunda Guerra Mundial: "Se a humanidade quer continuar vivendo, deve
mudar". O humanismo, em minha opinião, não é apenas a consciência da
solidariedade humana, é também a sensação de estar dentro de uma aventura
desconhecida e incrível. Dentro dessa aventura desconhecida, cada um faz parte
de um grande ser composto por sete bilhões de seres humanos, como uma célula
faz parte de um corpo entre centenas de bilhões de células. Todo mundo
participa dessa infinidade, dessa incompletude, dessa realidade tão fortemente
tecida de sonhos, desse ser de dor, alegria e incerteza que está em nós como
nós estamos nele. Cada um de nós faz parte desta aventura incrível, no sentido
mesmo da incrível aventura do universo. Ela traz consigo sua ignorância, seu
desconhecido, seu mistério, sua loucura em sua razão, sua inconsciência em sua
consciência, e cada um carrega em si mesmo, a ignorância, o desconhecido, o
mistério, a loucura, a razão da aventura mais incerta do que nunca, mais
aterrorizante do que nunca, mais emocionante do que nunca.
[1] Samuel Lopes Pinheiro - Doutorando em Educação
Ambiental pelo PPGEA/FURG. Está atualmente em período sanduíche em Paris,
França. Participa de INSPE (Institut Nacional Supérieur de Professorat et de
l’éducation), vinculado a Paris-Sorbonne e do laboratório de pesquisa COSTECH
da Université de Technologie de Compiégne. O presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) –
Código de Financiamento 001.
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