terça-feira, 31 de março de 2020

MORIN: Sentir mais do que nunca a comunidade de destino de toda a humanidade



Entrevista de Edgar Morin feita por Simon Blin no Jornal francês Libération em 27 de março de 2020. Disponível em: https://www.liberation.fr/debats/2020/03/27/edgar-morin-ressentir-plus-que-jamais-la-communaute-de-destins-de-toute-l-humanite_1783400
Título original: “Ressentir plus que jamais la communauté de destins de toute l’humanité”
Título em português: Sentir mais do que nunca a comunidade de destino de toda a humanidade

 Tradução livre feita por: Samuel Lopes Pinheiro[1]





Quase centenário, o sociólogo, eterno otimista, vê o confinamento como uma oportunidade inesperada para regenerar a própria noção de humanismo, mas também para que cada um opere uma triagem entre o importante e o frívolo.
Confinado, ele diz que se sentiu "psiquicamente projetado em uma comunicação e comunhão permanentes" com o mundo ao qual ele permanece virtualmente conectado. Ele que sempre viveu plenamente, cujo século de existência é composto de deslocamento perpétuo e compromissos políticos e intelectuais. Nascido em 1921, Edgar Morin, sociólogo, filósofo, "humanólogo", diz ele, escritor mundialmente famoso, pensador de "complexidade" com trabalhos abundantes e abrangentes (O Método é sua principal obra), viveu a resistência, cruzou o século XX entre admiração e revolta. Ele olha para essas duas semanas loucas que vimos o mundo inteiro afetado pela disseminação do Coronavírus e depois o direcionamento ao confinamento generalizado. O diretor emérito de pesquisa do CNRS, com quase um século de idade, com otimismo inabalável e um olhar luminoso, vê neste momento de parada planetária a oportunidade de uma "crise existencial salutar".

“Como você vive esse momento inédito e grave?”
Estamos sujeitos ao confinamento físico, mas dispomos de meios para nos comunicar com palavras que nos colocam em comunicação com os outros e com o mundo. Nesta fase, em reação ao confinamento, nós nos abrimos, estamos mais atentos e unidos uns aos outros. São os solitários sem telefone ou TV, e especialmente os não confinados, ou seja, os sem-teto, muitas vezes esquecidos pelo poder e pela mídia, que são as vítimas absolutas do confinamento. No que me diz respeito, senti-me participando intensamente, ainda que apenas por confinamento, no destino nacional e no cataclismo planetário. Eu me senti projetado mais do que nunca, na incerta e desconhecida aventura de nossa espécie. Eu senti a comunidade de destino de toda a humanidade, de maneira mais forte do que nunca.

“Como você descreveria essa crise na história pela qual você atravessou?”
Atualmente, estamos em uma crise tripla. A crise biológica de uma pandemia que ameaça indiscriminadamente nossas vidas e transborda as capacidades hospitalares, especialmente quando as políticas neoliberais as reduzem continuamente. A crise econômica resultante das medidas restritivas adotadas contra a pandemia e que, retardando ou interrompendo atividades produtivas, de trabalho, de transporte, sóirão agravar se o confinamento se mantiver. A crise da civilização: subitamente passamos de uma civilização da mobilidade para uma obrigação de imobilidade. Vivíamos principalmente fora, no trabalho, no restaurante, no cinema, em reuniões, em festas. Aqui somos forçados a um estilo de vida sedentário e de privacidade. Consumimos sob a influência do consumismo, ou seja, o vício em produtos de qualidade medíocres e virtudes ilusórias, o estímulo ao aparentemente novo, em busca do mais, e não do melhor. O confinamento poderia ser uma oportunidade para a desintoxicação física e mental, que permitiria selecionar o importante e rejeitar o frívolo, o supérfluo e o ilusório. O importante é obviamente o amor, a amizade, a solidariedade, a irmandade, o desenvolvimento do Eu em um Nós. Nesse sentido, o confinamento poderia dar origem a uma crise existencial salutar na qual refletiríamos sobre o significado de nossas vidas.

“Diante da pandemia, todo o nosso sistema foi abalado: saúde, política, economia e democracia. Seu trabalho intelectual consistiu precisamente em pensar a complexidade e a transdisciplinaridade.”
Essas crises são interdependentes e se nutrem. Quanto mais uma piora, mais agrava as outras. Se uma diminui, diminui as outras. Além disso, enquanto a epidemia não regredir, as restrições serão cada vez mais sensíveis e a contenção será experimentada cada vez mais como um obstáculo (de trabalhar, praticar esportes, ir a reuniões e shows, tratar o ciático ou dentes). Mais profundamente, essa crise é antropológica: revela-nos a face aleijada e vulnerável do formidável poder humano, revela-nos que a unificação tecnoeconômica do globo criou ao mesmo tempo uma interdependência generalizada, uma comunidade de destino sem solidariedade.

“É como se o mundo não entrasse mais nas nossas grades de análise. Os marcos intelectuais também são abalados.”
Essa policrise deve provocar uma crise de pensamento político e do pensamento em si. A fagocitose do político pelo econômico, a fagocitose do econômico pela ideologia neoliberal, a fagocitose da inteligência reflexiva pelo cálculo, tudo isso nos impede de conceber os imperativos complexos que são impostos: combinando assim a mundialização por tudo o que é cooperativo e uma desmundialização (para salvar territórios desertificados, autonomia alimentar e sanitária das nações); combinar desenvolvimento (que inclui o positivo, do individualismo) e envolvimento (que é solidariedade e comunidade); combinar crescimento e decrescimento (determinando o que deve crescer e o que deve diminuir). O crescimento carrega vitalidade econômica, o decrescimento carrega salvação ecológica e despoluição generalizada. A associação do que parece contraditório é logicamente necessária aqui.

“Nossa capacidade de "viver juntos" é severamente testada. Esta é uma oportunidade para reconstruir um novo humanismo, restaurar os fundamentos de uma vida comum mais unida em escala planetária?”
Não precisamos de um novo humanismo, precisamos de um humanismo atualizado e regenerado. O humanismo assumiu duas faces opostas na Europa. A primeira é a da quase-deificação do humano, dedicado ao domínio da natureza. O outro humanismo foi formulado por Montaigne em uma frase: "Eu reconheço em todo homem meu compatriota". Devemos abandonar o primeiro e regenerar o segundo.
A definição do humano não pode ser limitada à ideia do indivíduo. O humano é definido por três termos como inseparáveis ​​um do outro como os da trindade: o humano é ao mesmo tempo um indivíduo, numa parte, um momento da espécie humana noutra parte, e também um momento de uma sociedade. É ao mesmo tempo individual, biológico, social. Doravante, o humanismo não pode ignorar nosso vínculo umbilical com a vida e nosso vínculo umbilical com o universo. Ele não pode esquecer que a natureza está tanto em nós, quanto nós na natureza. A base intelectual do humanismo regenerado é a razão sensível e complexa. Não apenas devemos seguir o axioma "sem razão sem paixão, sem paixão sem razão", mas nossa razão deve estar sempre sensível a tudo que afeta os seres humanos.

“Isso implicaria uma inversão dos valores do mundo em que vivíamos antes do coronavírus”
O humanismo regenerado parte conscientemente das fontes da ética, presentes em toda a sociedade humana, que são a solidariedade e a responsabilidade. Solidariedade cria responsabilidade e responsabilidade gera solidariedade. Essas fontes permanecem presentes, mas parcialmente desidratadas e secas em nossa civilização por conta do efeito do individualismo, a dominação do lucro, a burocratização generalizada. O humanismo regenerado é essencialmente humanismo planetário. O humanismo anterior desconhecia a interdependência concreta entre todos os seres humanos, que se tornou uma comunidade de destino criada pela mundialização e que está aumentando constantemente. Como a humanidade está ameaçada por perigos mortais (multiplicação de armas nucleares, desencadeamento de fanatismos e multiplicação de guerras civis internacionalizadas, degradação acelerada da biosfera, crises e distúrbios de uma economia dominada por uma especulação financeira desencadeada), o que se acrescenta agora a pandemia viral que aumenta todos esses perigos, a vida da espécie humana e, inseparavelmente, a da biosfera se torna um valor prioritário.

“Essa mudança é fundamental?”
Para que a humanidade sobreviva, ela deve se transformar. Jaspers disse logo após a Segunda Guerra Mundial: "Se a humanidade quer continuar vivendo, deve mudar". O humanismo, em minha opinião, não é apenas a consciência da solidariedade humana, é também a sensação de estar dentro de uma aventura desconhecida e incrível. Dentro dessa aventura desconhecida, cada um faz parte de um grande ser composto por sete bilhões de seres humanos, como uma célula faz parte de um corpo entre centenas de bilhões de células. Todo mundo participa dessa infinidade, dessa incompletude, dessa realidade tão fortemente tecida de sonhos, desse ser de dor, alegria e incerteza que está em nós como nós estamos nele. Cada um de nós faz parte desta aventura incrível, no sentido mesmo da incrível aventura do universo. Ela traz consigo sua ignorância, seu desconhecido, seu mistério, sua loucura em sua razão, sua inconsciência em sua consciência, e cada um carrega em si mesmo, a ignorância, o desconhecido, o mistério, a loucura, a razão da aventura mais incerta do que nunca, mais aterrorizante do que nunca, mais emocionante do que nunca.


[1] Samuel Lopes Pinheiro Doutorando em Educação Ambiental pelo PPGEA/FURG. Está atualmente em período sanduíche em Paris, França. Participa de INSPE (Institut Nacional Supérieur de Professorat et de l’éducation), vinculado a Paris-Sorbonne e do laboratório de pesquisa COSTECH da Université de Technologie de Compiégne.  O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Nenhum comentário:

 Criada em 2015 em Portugal, o Climáximo é uma organização de ativistas climáticos, alinhada com o Ambientalismo Radical e baseada no princí...