terça-feira, 24 de março de 2020

Mauro Guimarães: PARA ONDE VAMOS APÓS A PANDEMIA?

cartoon: Max Speak


PARA ONDE VAMOS APÓS A PANDEMIA?[1]
Mauro Guimarães[2]
Inicio fazendo coro com Michel Löwy (2017) quando denuncia o caminho do ecossuicídio que nossa civilização está trilhando. Chamo a atenção que quando essa pandemia arrefecer, estaremos ainda submetidos a uma crise de proporções ainda maiores: a das mudanças climáticas e a correspondente degradação socioambiental planetária.
A civilização capitalista industrial moderna é um trem suicida que avança, com rapidez crescente, em direção a um abismo: as mudanças climáticas, o aquecimento global. Trata-se de um processo dramático que já começou, ... A partir de um certo nível de temperatura, será ainda possível a vida humana neste planeta?
                                                                            (Löwy, 2017)
Acreditar que podemos, cada vez mais, extrair recursos naturais, para transformar em mercadorias, muitas destas desnecessárias e supérfluas, para garantir uma economia que não pode parar de crescer, e tudo isso em um planeta finito e limitado em seus recursos, parece que é querer baixar os olhos para não ver o abismo que se aproxima!
Estamos diante de uma encruzilhada civilizatória: ou caminhamos passivos para o abismo, ou mudamos o rumo desse trem desgovernado. Reconhecer a gravidade deste momento histórico é um primeiro passo e que acredito que o Coronavírus possa até ajudar a revelar. Mas para onde vamos após essa Pandemia?
Diante da crise em sua complexidade civilizatória e a respectiva crise das referências como vivemos no mundo que a acompanha, se tem difundido no mundo as orientações políticas e econômicas do Neoliberalismo, em consonância ao paradigma disjuntivo (MORIN, 1999) da modernidade que a tudo separa, fragmenta e exclui. Tal circunstância dificulta perceber soluções que sejam amplas, voltadas para a inclusão numa totalidade societária socioambientalmente sustentável e, portanto, ao não se perceber, acentua-se a crise.
O Neoliberalismo é uma proposta que busca resposta recorrendo e acirrando os paradigmas disjuntivos da modernidade, quando aposta que o que deve motivar e mover as relações socioeconômicas são os estímulos dados às iniciativas privadas (dos indivíduos, do particular), regulados centralmente pelas leis de mercado, sem a interferência do Estado. O Estado Mínimo defendido é o enfraquecimento deste ente coletivo, Público, na regulação das relações econômicas e sociais. É deixar que os entes privados e seus interesses econômicos particulares sejam os definidores das relações estruturantes do modo de viver dessa sociedade. É fazer com que a meritocracia prevaleça, em que cada um por si, com sua “livre iniciativa” e a “livre concorrência” privilegie o mais capaz, o mais forte (mesmo que essa competição se dê em uma sociedade com pontos de partida tão desiguais). Acredita-se que com isso se levará a promover o desenvolvimento das forças produtivas geradoras de riqueza do sistema e seus mecanismos de acumulação. Certamente, com a “liberdade” da iniciativa privada, sem a regulação de um ente público, que visa à moderação de desequilíbrios nas relações sociais, os indivíduos (partes), os segmentos mais fortes que constituem uma elite, fazem com que os interesses particulares dessa elite se sobreponham ao interesse coletivo popular. Se o resultado esperado é o crescimento da economia, poderão até obter bons números econômicos, mas as relações de poder que domina e explora o outro, indivíduo, classe, nações periféricas, natureza, essas serão acirradas com a consequente intensificação das degradações socioambientais. Não há políticas Neoliberais para combater à desigualdade social e delimitar a degradação do meio ambiente; pelo contrário, essas são vistas como gastos e empecilho ao crescimento econômico! Tudo isso agrava a imensa crise que estamos vivendo. Me parece que a Pandemia do Covid19, está demonstrando o quanto a sociedade está necessitando de um Estado presente, através de seus Sistema de Saúde Pública (SUS), de suas Instituições de pesquisa pública que desenvolvem suas atividades, não em função das necessidades do mercado, mas das necessidades humanas de toda uma população.  População que se não estiver saudável em seu conjunto, não há como garantir a saúde individual, mesmo que seja da elite.
Buscar saídas individuais, particulares, privadas é reforçar a perspectiva excludente, disjuntiva e fragmentária que está no cerne da crise civilizatória, que tem na ideia da prevalência do mais forte, da particularização dos interesses, do “cada um por si”, a exacerbação do egoísmo narcisista de um indivíduo ensimesmado em um egocentrismo. Valores de uma modernidade líquida e efêmera, como diria Bauman (2001), estruturantes da dissolvência da noção de comunidade, do coletivo, de uma sociedade que tenha um propósito em comum, do público, da solidariedade como fundante das relações. A princípio, pode parecer paradoxo a noção de Nacionalismo, como espaço identitário de um coletivo comum, sendo propagado junto à efetivação desse Neoliberalismo no mundo. Porém, o que referencia esse Nacionalismo (de extrema direita) em curso é a mesma perspectiva disjuntiva e excludente do Neoliberalismo. A mesma que historicamente sustenta os poderosos e a predominância de seus interesses particulares como, o de “meu país/eu primeiro” que está implícito no “American First”; que faz inimigos os refugiados e imigrantes de outras nações. A defesa dos “meus” valores tradicionais, o que faz a estes entenderem os outros como diferentes e inferiores. Diferenças que para eles destroem seus valores e assim devem ser perseguidos e marginalizados, como os que têm diferentes orientações sexuais, os que reivindicam igualdades nas relações étnicas, de gênero, de outras crenças religiosas. Como também os que defendem regulações para uma sociedade mais igualitária, que são extemporaneamente estereotipados como “comunistas antipatriotas”. Ou seja, tudo e todos que questionam uma ordem historicamente dominante instituída por meio da imposição dos interesses econômicos, valores e costumes de uma elite econômica poderosa.
Ao neoliberalismo, que favorece a predominância do mais forte e que detém, portanto, o poder, se junta uma visão nacionalista. Visão essa de que a nação deve estruturar-se a partir dos valores dos dominantes, “tradicionais”, e que, portanto, os interesses privados, dos poderosos certamente, devem ser privilegiados sem a presença de um Estado regulacionista. Para esses, o Estado quando cumpre a função distributivista, retira recursos do mercado, o que “pesa” no crescimento econômico e, assim, na geração e acumulação da riqueza dos mais fortes, a elite política-econômica de cada nação. Para deixar claro, a doença para a saúde privada é o meio de geração de lucro, para a saúde pública é um dever.
Desta forma, neste mundo globalizado em que o capital (principalmente financeiro especulativo) se transnacionalizou, os interesses privados das elites das diferentes nações se interligam pelo mundo transnacionalizado, não se limitando aos interesses nacionais. Porém, Estados em que o Neoliberalismo predomina, a sua presença mínima, mas dominada pela elite e seus representantes, é garantidora dos mecanismos de uma economia de livre mercado com mínima interferência do Estado. Assim fecha o ciclo que potencializa as boas condições para as elites econômicas, em sua bidimensionalidade nacional e transnacional, reproduzir este modo de acumulação econômica globalizado. Porém, ao mesmo tempo, a manutenção desse processo de reprodução e acumulação crescente do capital vem, exponencialmente, acentuando a postura excludente nas relações sociais, que degradam as condições sociais da grande maioria, assim como intensifica a destruição do meio ambiente; moto contínuo das relações de degradação socioambiental e intensificadora da grave crise mundial.
A tudo isso, serve de contexto para uma grave denúncia de Bruno Latour (2019),
“Tudo parece indicar que uma boa parte das classes dirigentes (o que hoje se chama, de forma muito imprecisa, as “elites”) chegou à conclusão de que já não há suficiente espaço na Terra para elas e para o resto de seus habitantes. Por conseguinte, as elites concluíram inútil a ideia de que a história se dirige a um horizonte comum onde “todos os homens” poderemos prosperar de igual maneira”
                                       (Latour, 2019, p.12. Tradução do autor)
Considerar a possibilidade de descarte, pela exclusão do seu semelhante, pelo abandono à deriva a própria sorte de um náufrago refugiado, ou de uma esquálida criança a morrer de fome, ou pelo cultivo de sentimentos de ódio ao vulnerável, às minorias, essa perspectiva aponta a dimensão de mais uma grave crise e que se interagem! A crise ética de perda de fundamentais valores humanos e da subjugação aos interesses econômicos. O descompromisso com a manutenção da vida, do cuidado com o outro como garantia da própria continuidade da vida humana, como na força maternal diante do perigo para sua cria. Da ação solidária nas relações, como forma e estratégia de sobrevivência dos indivíduos e da espécie. Valores esses fundamentais para garantir os humanos em sua humanidade até os dias atuais e que possa prevalecer nesse momento de pandemia. O ataque e dissolvência ética desses valores nos coloca a barbárie no horizonte. São esses fortes indicadores de que vivemos uma gravíssima crise de um naufrágio civilizatório.
A grande ameaça da morte trágica é o que verdadeiramente nos une. O risco da extinção da vida humana ou até mesmo a vida como um todo, é o grave cenário que o câmbio climático nos apresenta. Hoje, agora, temos o Coronavírus demonstrando todo o seu grave e imediato impacto global, mas vivemos para além da pandemia, a grande ameaça das mudanças climáticas e olhamos para ela como se não fosse algo tão grave assim, que está longe de nossas vidas. Entretanto, nossas vidas, de todos, estão também em grande risco. Vivemos uma emergência climática!
O que a ciência mundial coloca é que a degradação do meio ambiente, na escala planetária que alcançou, está em ponto de colapsar o equilíbrio ecológico que mantém as atuais condições que conhecemos para a reprodução da vida na biosfera; ou seja, em todo o Planeta Terra.
Costumamos pensar que os fenômenos se desenrolam numa sequência progressiva e que com o tempo, com a acumulação dos impactos é que chegaremos a uma grande situação caótica. Acreditamos que nessa acumulação, teremos tempo e que a tecnologia resolverá tudo. Os estudos nos mostram cada vez mais que estes não são os fatos.Temos pouco tempo para tomar decisões!
Realmente, o dinâmico equilíbrio ecológico tem uma capacidade de reter uma progressiva tensão, o que os ecólogos chamam de resiliência, sobre suas flexíveis redes de relações, mas a teia da vida um dia pode se romper! A ruptura desse equilíbrio provoca de imediato uma forte reação em cadeia, que produz um caos na ordem anterior, na forma como os fios eram tecidos e que sustentavam aquelas condições de vida. Nessa ruptura, quem viver, viverá o caos! Uma situação de tal magnitude que vivê-la, os que sobreviverem, estarão conhecendo algo talvez próximo as alegorias do que se chama de inferno!
O que a Ciência nos diz é que estamos vivendo hoje um grave dia da história da humanidade, em que em poucas horas essa teia da vida poderá se romper. A reação em cadeia que virá, com mega impacto sobre as condições ambientais que mantém as atuais formas de vida, inclusive a nossa humana, é imprevisível e aterradora! Temos todos poucas horas! O que fazer? Fios isolados não formam uma teia.  No naufrágio civilizatório, tentar se safar cada um por si? American First? Será a confirmação da denúncia de Latour de uma rota de fuga, em que as elites mundiais estão correndo para pegar os poucos botes salva vidas do Titanic para se salvarem, deixando a própria sorte os não privilegiados? Grande ilusão, somos todos vulneráveis passageiros em uma nave muito maior e que nesta forte tormenta, estes botes são muito mais frágeis, reduzidos e limitados para enfrentar esta crise. Essa postura individualista e excludente é que tem nos levado a todos a essa situação de degradação social, ambiental, ética. Continuar buscando a rota de fuga, reproduzindo o mesmo caminho que nos trouxe até aqui, isso é continuarmos vivendo o naufrágio, presos na armadilha paradigmática da disjunção, da separação e da exclusão.
Diferentemente a Latour, apostamos otimistamente que pelo menos parte das elites mundiais manifestam essa postura excludente da estrutura de pensamento disjuntivo da modernidade, por se encontrarem presos inconscientemente a essa armadilha paradigmática. A cegueira produzida por essa armadilha é o naufrágio de todos, porque todos somos vulneráveis quando buscamos enfrentamentos particularizados. Individualmente somos frágeis e na busca histórica da sobrevivência sempre fomos seres sociais colaborativos. Os botes salva vidas são muito mais frágeis para enfrentar a tormenta, o navio tem maiores possibilidades. A diversidade e a sinergia de todos embarcados no navio é que poderão potencializar a superação da tormenta.
Estarmos conscientes desse risco e enfrentá-lo com todas as nossa forças é estarmos juntos investindo, com prioridade absoluta, no que pode nos levar a mudar a tensão que se faz sobre a teia da vida. Como sociedade, temos que estar abertos e fortemente intencionados de buscarmos viver sob novas relações entre nós e com o meio ambiente. Isso significa termos que abrir mão do atual modo de vida, das expectativas e desejos que alimentam nossos atuais sonhos de futuro trocando por outros, de nos desbravar diante do medo que o desconhecido nos traz, para a construção de outro mundo possível, simples e feliz, em que boas relações mais humanas e solidárias possam se manifestar.
A prioridade para as transformações significativas que precisamos implementar passa fundamentalmente por pressionar os tomadores de decisão para políticas de investimento para o público em Educação, Ciência e preservação ambiental; assim como de combate à desigualdade social.  Transformações que se voltem para criar as condições de um novo modo de vida, em que as relações em equilíbrio entre indivíduos e desses com a natureza sejam o que estruturem dialogicamente um novo modo de organização social em um novo modo de produzir e consumir na relação com a natureza. Relações que destencionem a teia da vida e permita, na resiliência, trançarmos novos fios na teia!
O caminho negacionista de atacar e desacreditar a Educação, a Ciência e a necessidade de preservação ambiental, como também o incentivo à concentração de renda das políticas neoliberais, como tem acontecido em movimentos reacionários de conservação do status quo que se empoderam no Brasil e outros lugares do mundo, nos aproximam cada vez mais deste ponto de ruptura, do caos e da barbárie e isso afeta a todos, sem exceções para privilegiados!
Estamos sendo fortemente abalados como indivíduos e sociedade pela pandemia do Coronavírus, que possamos tirar sábias lições para fazer as opções diante de uma catástrofe como as mudanças climáticas nos anunciam. Que as dores de uma  experiência tão significativa e transformadora como estamos vivendo, possa despertar o espírito humano solidário que sempre se apresentou nos momentos difíceis que a humanidade já passou. Estarmos consciente da grande ameaça da morte e da barbárie é o que verdadeiramente nos une, e como a sabedoria popular nos indica, “a união faz a força”. Eis um bom e novo caminho a seguir, a conquistar e transformar!
Bibliografia
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.
GUIMARÃES, M. e MEIRA, P. Há rota de fuga para alguns, ou somos todos vulneráveis? A radicalidade da crise e a educação ambiental. revista Ensino, Saúde e Ambiente. Niterói, UFF, 2020.
GUIMARÃES, M. Pesquisa e processos formativos de educadores ambientais na radicalidade de uma crise civilizatória. Revista Pesquisa em Educação Ambiental, vol.13, n.1 – pags. 58-66, 2018.
LATOUR, B. Dónde Aterrizar. Como orientarse em política. Madri: Taurus, 2019.
LÖWY, M. Entrevista concedida a Miguel Fuentes em 10/05/2017. Disponível em: https//outraspalavras.net/posts/lowy-historia-razoes-e-etica-do-ecossocialismo. Acesso: 14/02/2018.
MORIN, E. Ciência com Consciência. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.






[1] Texto baseado em artigos próprios referenciados na bibliografia.
[2] Professor Doutor Pesquisador do Programa de Pós Graduação em Educação: contextos contemporâneos e demandas populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.



Nenhum comentário:

 Criada em 2015 em Portugal, o Climáximo é uma organização de ativistas climáticos, alinhada com o Ambientalismo Radical e baseada no princí...