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Ecologia poética de Cortázar
Os poemas de Cortázar falam da própria poesia, do cotidiano, das vertigens do sentimento amoroso (Foto: Reprodução)
O último livro publicado em vida por Julio Cortázar (1914-1984), no mesmo ano de sua morte, foi a extraordinária reunião de poemas Salvo el crepúsculo, com textos escritos ao longo de sua carreira e que o acompanharam como uma espécie de caderno de anotações à margem da prosa e de seu percurso intelectual, um contraponto discreto e refinado à obra de ficção que o notabilizou.
Aquilo que muitos intérpretes consideram, com certa ingenuidade, ser o teor fantástico, ou surreal, na prosa do autor de O jogo da amarelinha (Rayuela, 1963), pode ser entendido também como uma poética longamente pensada e experimentada na linguagem, sempre multifacetada, inclusive na crítica e no ensaio. No cerne das imagens labirínticas e dos enredos aparentemente desconcertantes de Cortázar, havia a consciência do caráter analógico que está na raiz da poesia e que confere ao literário um campo de infinitas combinações e surpresas. Para além da representação do mundo, ainda que sob uma perspectiva autoral, existe a possibilidade de recriar os fatos, ou simplesmente instaurar novas dimensões do real, em permanente construção.
O título do livro Salvo el crepúsculo foi retirado de um haicai do poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694), que diz: “Este caminho/ já ninguém o percorre/ salvo o crepúsculo”. Escolha de saída emblemática para um livro que recolhe a maior parte da poesia escrita pelo escritor argentino, já próximo da morte, perfazendo quase um balanço dessa produção subterrânea, paralela à ficção. Também é significativa, no poema de Bashô, a alusão ao caminho abandonado, que pode ser a memória, ou toda experiência que deixamos passar sem a devida consideração, os pormenores, o inesperado, a singularidade, o espanto e o encantamento. Dado que será fundamental para a obra ficcional de Cortázar.
Ao explicar a proposta do conjunto de poemas compilados no livro, Cortázar afirma que não queria “mariposas presas num cartão”, mas que buscava “uma ecologia poética”, para observar-se de longe e às vezes se reconhecer “a partir de mundos diferentes, a partir de coisas que só os poemas não haviam esquecido e me guardavam como velhas fotografias fiéis”. Ainda na mesma breve apresentação, o autor revela o critério bastante subjetivo que utilizou para dar forma à antologia: “não aceitar outra ordem que a das afinidades, outro cronologia que a do coração, outro horário que o dos encontros casuais, os verdadeiros”. O tom pessoal, quase íntimo, parece contrastar com a elaboração sofisticada de seus ensaios, ou a tessitura experimental e exigente de seus contos, mas se levarmos em conta a poesia que realizou e suas reflexões sobre o assunto, é possível notar que existe uma fina sintonia nesse imenso e original projeto literário, como um fio de Ariadne que conduz a travessia do poeta e do prosador através da linguagem.
Os poemas de Cortázar falam da própria poesia, do cotidiano, de mitos e personagens lendários, das vertigens do sentimento amoroso, de Buenos Aires e Paris, obviamente, da arte, do jazz, do tango, de como o tempo se torna uma grande fantasia, ou um temível pesadelo, de cenas banais que se transformam em pequenas epifanias, numa mistura nem sempre equilibrada de lirismo, melancolia, humor e crítica. As referências são as mais diversas, no tempo e no estilo, de Rimbaud a Clarice Lispector, de Yeats a e. e. cummings, de uma canção de Joni Mitchell a Louis Aragon, de Shelley a Laurence Stern, a lista poderia se multiplicar e intercambiar ao infinito.
O poeta Cortázar traça correspondências entre coisas do pensamento e da realidade para mostrar que a razão não é a ordenadora soberana de nossas condutas e que os modos de entendimento são atravessados pelo lúdico, pela fantasia, pelo caos dos sentidos que o poético desnuda. Num curto e belo poema metalinguístico do livro, Cortázar escreve: “Encharcado de abelhas,/ no vento sitiado de vazio,/ vivo como um ramo,/ e no meio de inimigos sorridentes,/ minhas mãos tecem a lenda,/ criam o mundo esplêndido,/ esta vela estendida”. A obsessão pela deriva na história, a mínima, pessoal, e a da sociedade, fantasmagórica, como se o sentido não estivesse em parte alguma, ou em todo lugar, para escrever a vida, ou extrair da vida a sua escrita própria, seu discurso vivo. Fazer com que o vivido se escreva e seja escritura. O escritor é aquele que cria mundos esplêndidos e vive cercado pelo vazio.
Em outro momento, num dos vários sonetos presentes no livro, Cortázar define o amor como uma “estátua leal, de costas para o futuro,/ com um nome infinito e repetido/ de pedra e sonho e nada”. Imagem que lembra o anjo de Paul Klee, citado por Benjamin em suas famosas “Teses sobre o conceito de história”, de 1940, aqui transplantado para o cenário amoroso e sua precariedade humana e terrena, em fecho mallarmaico.
Nessa alternância de formas e dicções, de temas e tons, que pode ir do mais grave ao coloquial, ou do confessional ao reflexivo, percebe-se nos poemas de Cortázar a tentativa de dar conta de muitos elementos que gravitam entre as questões que norteiam sua obra, como a polissemia, o deslocamento de perspectiva e de foco narrativo, a instabilidade do discurso racional, o desenraizamento, a sobreposição temporal, a correspondência de imagens, vozes e ambientação, os cortes abruptos de clima, ambiente, fluxo discursivo. Em livros como Histórias de cronópios de famas (1962), Último round (1969) e Prosa do observatório (1972), é evidente a contaminação da prosa pela poesia, de uma prosa porosa ao poético, musical e lúdica.
No belo e revelador ensaio “Por uma poética”, de 1954, Cortázar revela sua visão sobre a poesia e de como ela se estrutura historicamente, enquanto recurso de linguagem baseado no mecanismo da analogia, ou da metáfora. A partir da referência a antropólogos, como Lévy-Bruhl e Charles Blondel, e a muitos poetas, o escritor defende que a proximidade entre o poeta e o homem primitivo se dá pelo “estabelecimento de relações sólidas entre as coisas por analogia sentimental, pois certas coisas são às vezes o que outras são, porque se para o primitivo existe árvore-eu-sapo-vermelho, também para nós, de súbito, o telefone que toca num quarto vazio é o rosto do inverno ou o cheiro de luvas onde houve mãos que hoje moem seu pó”.
Enquanto a progressão da racionalidade eliminou do nosso horizonte de pensamento “a cosmovisão mágica”, substituída “pelo método filosófico-científico”, o poeta representa “o prosseguimento da magia em outro plano”, como um “fazedor de intercâmbios ontológicos”, uma vez que “o poeta e suas imagens constituem e manifestam um único desejo de salto, de irrupção, de ser outra coisa”. Essa projeção no outro, em outra experiência que também é sua, por apropriação ou transfiguração, leva Cortázar a definir “que todo verso é encantamento, por mais livre e inocente que se ofereça, é criação de um tempo e um estar fora do ordinário, uma imposição de elementos”. Até parece que o autor estava definindo, de maneira oblíqua, sua própria ficção, ou nos dando uma pista de como o poético estaria na essência de seu processo criativo, aquela “ecologia poética”, e fertiliza a experimentação com a linguagem.
Publicado em 2009, com edição de Aurora Bernárdez e Carles Alvarez Garriga, o livro Papeles inesperados traz um alentado volume de textos inéditos de Cortázar, guardados pelos herdeiros, com uma pequena seção final de poemas, demonstrando ainda sua persistente escrita dessas notas à margem, como a mosca insistente, que o poeta matou tantas vezes, “em Casablanca, Lima, Constantinopla, Montparnasse”, em espaços variados, como “um bordel, na cozinha, sobre um pente, no escritório, neste travesseiro”, tantas mortes recorrentes do inseto, num quase apelo kafkiano, em que o poeta confessa: “eu, como minha única vida”.
Ainda naquele ensaio sobre o poético, Cortázar escreve que “a admiração pelo que pode ser nomeado ou aludido engendra a poesia, que se proporá precisamente a essa nominação, cujas raízes de clara origem mágico-poética persistem na linguagem, grande poema coletivo do homem”. Um trecho do ensaio-poema-diário-de-viagem Prosa do observatório, entre muitos possíveis, ilustra a preocupação de Cortázar com a função poética da linguagem: “desde logo a inevitável metáfora, enguia ou estrela, desde logo cabide da imagem, desde logo ficção, ergo tranquilidade nas bibliotecas e poltronas; como quiseres, não há outra maneira aqui de ser um sultão de Jaipur, um bando de enguias, um homem que levanta o rosto para o aberto da noite ruiva”.
Quando se retirou pelas estradas de Provença em sua perua “Fafner” para revisar as provas de O livro de Manuel, no verão de 1972, Cortázar escreveu um livrinho notável de apontamentos, que registram suas inquietações sobre a própria obra, a vida, a literatura e a realidade ao redor, não só a da paisagem, como a que vinha pelo rádio, em boletins de notícias a cada quarto de hora, “o diário de uma rotina de escritor”. Material precioso e raro para adentrar a intimidade da criação, os impasses, as referências, a construção da narrativa, dos personagens, a memória, a porosidade aos fatos, a tragédia nas Olimpíadas de Munique, poesia e política, histórica e psique, tudo a reclamar “algo como uma osmose com o circundante”. Poesia como outro lado da moeda da prosa, “região onde as coisas renunciam à sua solidão e se deixam habitar”, que pode ser “uma casa tomada”, um “bestiário”, um “octaedro”.
Reynaldo Damazio é editor, poeta e crítico literário
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