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O que fazer diante da barbárie?
Edição do mês(Divulgação)
O exército dispara contra um carro civil. O motorista e um dos passageiros do banco traseiro são atingidos. Outra passageira, do banco da frente, acalma os feridos: “Não são bandidos, é o exército. Está tudo bem. Logo o socorro chega.” Ela sai do carro, abre a porta traseira para uma amiga e o filho de sete anos. Ao se afastarem, mais disparos de fuzil. Oitenta, no total. O motorista, o músico Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos, morre. Enquanto Luciana Nogueira, sua esposa, grita por socorro, os homens fardados riem. Outro homem que passa pelo local ajuda a família e também é baleado. Luciano Macedo, catador de lixo, vai para o hospital em estado grave e morre onze dias depois.
O mesmo exército que disparou os fuzis julgará o caso. Conforme a lei 13.491/2017, decretada por Michel Temer, o julgamento de militares que cometem crimes contra civis passou a ser atribuição da Justiça Militar; uma violação de direitos humanos, de acordos internacionais e de qualquer propósito de justiça.
Mencionar que era domingo de tarde e que a família negra passava por Guadalupe, na zona norte do Rio, rumo a um chá de bebê, soa desnecessário. Tanto quanto reafirmar que Evaldo era trabalhador, não criminoso. Se fosse noite ou se o carro levasse mulheres ou homens infratores, os disparos estariam justificados? Naturalizamos de vez a pena de morte no Brasil? E sem julgamento? A informação – que reproduzo aqui quase todos os meses – de que a cada 23 minutos um jovem negro é executado no Brasil parece banal. É o esperado. Possivelmente, o desejado.
Parte das pessoas que se diz defensora de direitos humanos manifestou alguma indignação no Facebook. Textão. Filtro da foto de perfil simulando buracos de bala. Gente branca afirmando, em hashtags, que #VidasNegrasImportam. Mas aí, entidades do movimento negro convocaram atos em todo o país para o domingo seguinte, em São Paulo, sob a palavra de ordem “80 tiros em uma família negra, 80 tiros em nós”. E quem vai para a rua? Na tarde de 14 de abril de 2019 estive na avenida Paulista com militantes do movimento negro que suspiravam de cansaço ao se abraçar. Três dias antes, havíamos nos encontrado no Cemitério da Saudade, em Taboão da Serra, depois de enterrar Tula Pilar. A escritora, poeta, atriz, educadora conhecida no cenário cultural das periferias, frequentadora do Sarau do Binho e da Cooperifa, que por anos foi vendedora da revista Ocas, nos deixou depois de uma parada cardíaca, em meio a uma crise respiratória.
Tula Pilar havia passado algumas vezes no pronto-socorro naquela semana. Recebia uma inalação e era orientada a voltar para casa. Nenhum exame. Quase nenhuma atenção. Algum nível de negligência característico do racismo estrutural que tanto denunciamos. E aos 49 anos de idade, é mais uma mulher negra e periférica a morrer cerca de 30 anos antes da expectativa de vida da média da população.
Exatamente um ano antes, em 14 de abril de 2018, estivemos também na avenida Paulista cobrando justiça pelo assassinato de Marielle Franco. Fazia um mês da morte da vereadora eleita, mulher negra favelada. E até hoje não sabemos quem mandou o vizinho do presidente matar Marielle.
“Se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim! O policial que não atira em ninguém e atiram nele não é policial”, declarou Jair Bolsonaro, em dezembro de 2017, quando ainda era deputado federal (PSC-RJ) e pré-candidato à Presidência da República. Depois do assassinato de Evaldo, o presidente passou cinco dias sem comentar o ocorrido, quando afirmou que os 80 tiros foram um incidente.
Desde fevereiro de 2019, tramita na Câmara Federal o chamado pacote anticrime apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro (PL 882/19). O conjunto de propostas tem sido denunciado nacional e internacionalmente, por ignorar fatos, evidências científicas e elaborações da sociedade civil sobre a segurança pública e os direitos humanos. Para citar apenas duas violações de direitos propostas no pacote: (1) ao formalizar prisões em segunda instância, abre-se mão do direito à presunção da inocência, o que levará ao cárcere inúmeras pessoas que não tiveram sua sentença definida; (2) ao considerar legítima defesa que agentes policiais ou de segurança pública previnam agressões em conflitos armados, ou seja, possam atirar primeiro, consolida-se uma licença para matar. Pena de morte, sem julgamento, legalizada.
Trinta e nove entidades do movimento negro protocolaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre os riscos que o dito pacote oferece “à democracia, à ordem constitucional e aos direitos consagrados pela Convenção Americana de Direitos Humanos, notadamente das pessoas negras, pobres e moradoras das favelas e periferias do Brasil”. Esta ação inaugurou a articulação de uma coalizão de entidades do movimento negro para participação em fóruns internacionais e incidência no Congresso Nacional.
A CIDH acatou a denúncia e convocou uma comitiva para participar de audiência oficial, em 9 de maio, na Jamaica, durante o 172º Período Extraordinário de Sessões. Representarão o Brasil nesta audiência Douglas Belchior, da Uneafro, Ieda Leal, do Movimento Negro Unificado, Sandra Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, Winnie Bueno, iyalorixá, Rute Fiúza, das Mães de Maio da Bahia, Pedro Borges, do Alma Preta, Maria Sylvia, de Geledés – Instituto da Mulher Negra, Lia Manso, da Criola, Gizele Martins, do Movimento de Favelas, Nilma Bentes, da Marcha das Mulheres Negras e Anielle Franco, do Instituto Marielle Franco.
Entidades que estão articulando esta coalizão estiveram em Brasília no mês de março para se reunir com parlamentares negros buscando desenhar estratégias comuns na luta antirracista; para sentar com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e assegurar o compromisso de não revogação da bem-sucedida política de cotas raciais; e para garantir a participação de negras e negros nas discussões do pacote anticrime. Afinal, somos 52% da população brasileira, os mais vulneráveis às violações de direitos humanos no Brasil e os principais alvos do chamado pacote anticrime. Mas também somos juristas, especialistas, pesquisadoras, doutoras, militantes: temos preparo técnico e voz pública para travar os debates democráticos necessários.
Rodrigo Maia determinou a criação de um grupo de trabalho para analisar o pacote – estão previstas dez audiências públicas para debater os principais temas. A coalizão de entidades do movimento negro, com apoio dos parlamentares Orlando Silva (PCdoB-SP), Paulo Teixeira (PT-SP) e Marcelo Freixo (Psol-RJ), garantiu a participação de, ao menos, um representante da luta antirracista em cada uma das audiências. A primeira aconteceu em 17 de abril sob o tema “Mudanças na parte geral do Código Penal”, e Livia Casseres, defensora pública negra do estado do Rio de Janeiro foi nossa representante. “Quem diz o que é segurança pública são as Mães de Maio e de Manguinhos. Sem essa garantia, nós não vamos avançar em termos de combate à violência, combate ao crime organizado e combate à corrupção”, afirmou.
Ainda em maio estaremos no Senado. Em dezembro, em um encontro mundial de organizações negras africanas e da diáspora, construído com o intuito de refletir sobre ações comuns no enfrentamento ao genocídio nas Américas e na África, em aliança com as duas principais redes de luta antirracista do planeta, Black Lives Matter e Africans Rising.
Não há pena de morte legal no Brasil, nem haverá, senhor Sérgio Moro. Não aceitamos o assassinato de nossas mulheres nem de nossos jovens, seja por negligência hospitalar, seja por bala a cada 23 minutos. Não há justificativa ou incidente quando o exército dispara 80 tiros contra um carro civil. Vamos descobrir e condenar quem mandou matar Marielle Franco. Estamos unidas, em coalizão, e cada vez mais fortes.
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