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É preciso construir uma utopia que oriente nossas ações, de modo a engendrar uma nova democracia, com novos mecanismos de participação, que afirme um novo poder, o poder popular.
EDITORIAL
Enfrentar o luto
por Silvio Caccia Bava
Abril 30, 2019
Imagem por Claudius
É preciso construir uma utopia que oriente nossas ações, de modo a engendrar uma nova democracia, com novos mecanismos de participação, que afirme um novo poder, o poder popular.
Precisamos enfrentar o luto e, mais do que reagir, retomar a iniciativa. Os cem dias de governo de Bolsonaro deixam claro que seu objetivo é destruir nossos projetos de um país mais justo, menos desigual, sem pobreza, com a participação da cidadania na política.
Estamos capturados por uma agenda que defende valores conservadores, por uma campanha de luta contra a corrupção que se evidencia cada vez mais como uma retórica de manipulação. Não parece haver espaços para denunciar os discursos de violência do Estado contra os pobres e de criminalização dos movimentos sociais. Enquanto ficamos enredados nesses debates, discutindo o que Bolsonaro coloca em seu Twitter, o país vai sendo desmontado, as empresas públicas vendidas, nossas riquezas naturais expropriadas, e vamos nos tornando cada vez mais vassalos dos Estados Unidos. O debate de como construir um mundo melhor, uma nação autônoma, capaz de gerir seu destino, não está nas páginas, nas ondas e nas telas da mídia nem nas timelines das redes sociais.
Mas o luto não é só nosso, dos brasileiros. Essa nova etapa financeirizada do capitalismo global vai reproduzindo, mundo afora, os mesmos mecanismos que promovem o colapso da democracia liberal e a ascensão da sociedade do controle, de regimes autoritários, da espoliação generalizada das maiorias. Depois de Trump, de Bolsonaro e de outros líderes como o comediante Volodymyr Zelenskiy, da Ucrânia, que decidiu em janeiro, sem um partido político estruturado, concorrer à presidência de seu país e se elegeu agora com 73% dos votos, assistimos ao avanço global da extrema direita, sem que se vislumbre uma estratégia das forças progressistas capaz de enfrentar essa tendência.
O debate está aberto: como enfrentar o avanço da extrema direita, uma vez que ela não se propõe a assumir um pacto democrático para melhorar um pouco a vida das maiorias, como fez o PT?
Poderá ter sucesso a plataforma política social-democrata de Bernie Sanders e Ocasio-Cortez, nos Estados Unidos, que pretende diminuir o fosso da desigualdade propondo novas políticas públicas e uma maior taxação dos mais ricos, mas que não se propõe a mexer com as estruturas? O que deve ser uma plataforma da esquerda hoje?
Não faltam assuntos de extrema urgência:
- Como impedir que os agrotóxicos envenenem nossas crianças?
- Como impedir que a mineração cause a absurda devastação ambiental e a morte de milhares de pessoas aqui e em todo o mundo?
- Como impedir que, para maximizar seus lucros, o capitalismo financeirizado, com seus programas de austeridade, deixe que os mais pobres, crianças, adultos e velhos, morram de fome e de doenças?
- Como impedir que a reforma da Previdência deixe os mais velhos na miséria, sem proteção social?
- Como impedir a extinção da vida no planeta pelo aquecimento global, pela ação do homem?
Tudo isso quando meia dúzia de super-ricos detêm a riqueza que corresponde ao que possui a metade mais pobre da humanidade.
São tempos de rupturas. Para o capitalismo global, a democracia liberal como instrumento de legitimação do poder e promoção da igualdade de direitos e oportunidades não tem mais sentido. Com sua agenda de espoliação das maiorias, o capitalismo financeirizado lança mão de regimes políticos autoritários. A prova é seu engajamento na eleição de líderes da extrema direita, incentivando o descrédito popular com a democracia, com os partidos políticos existentes e mesmo com as instituições que construíram o pacto social que elegeu o Estado de bem-estar social como meta para assegurar direitos básicos para todos.
Hoje já vivemos a barbárie em escala global, em que os grandes atores financeiros, que controlam governos e instituições multilaterais, avalizam políticas que controlam pela manipulação, pela força, pela violência e, como vemos no caso de Marielle, de Anderson e de lideranças de movimentos sociais, pelo assassinato. Quem mandou matar? É preciso nomear os responsáveis.
Não há como organizar a resistência nos moldes do passado nem buscar a conciliação de interesses com as classes dominantes. Como nos aponta Rancière: “Só elaborando o mal-estar (o ódio) em chaves políticas de emancipação (coletivas, igualitárias, abertas e inclusivas) se poderá disputar terreno com esta ‘lógica de guerra’. A politização do mal-estar é o melhor antídoto contra sua instrumentalização por parte daqueles que querem encontrar bodes expiatórios entre os outros”.1 Isso significa não só fazer a disputa pelos direitos e por valores igualitários e de solidariedade, mas também municiar as lutas cotidianas do povo, que são por emprego, segurança, transporte, saúde, educação, direitos de aposentadoria.
O movimento de superar o luto e tomar a iniciativa implica também buscar uma sintonia e uma articulação com setores da juventude que rejeitam as institucionalidades, porque, como estão, não são portadoras de futuro para os jovens.
Estamos diante do desafio da construção de novos paradigmas, novos modos de pensar, novas institucionalidades, para que a economia se oriente não para o lucro de alguns poucos, mas para atender aos interesses das maiorias. É preciso construir uma utopia que oriente nossas ações, de modo a engendrar uma nova democracia, com novos mecanismos de participação, que afirme um novo poder, o poder popular. É preciso inverter a equação na qual a economia molda a sociedade e suas formas de representação democrática. É uma democracia de novo tipo que precisa controlar a economia, essas empresas gigantes responsáveis pela promoção da barbárie.
Para Nancy Fraser, mais do que recompor as bases do Estado de bem-estar social, o desafio para a esquerda é tornar concreto e credível um projeto (a utopia) de superação desse modelo baseado em consumo e endividamento para os pobres e financeirização/especulação para os ricos.2
Silvio Caccia Bava é editor chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
1 “Como sair do ódio?”, entrevista com Jacques Rancière, blog da Boitempo, 10 maio 2016.
2 Nancy Fraser, “El final del neoliberalismo ‘progresista’”, Sinpermiso, 12 jan. 2017. Disponível em: <www.sinpermiso.info/textos/el-final-del-neoliberalismo-progresista>.
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