A POPULAÇÃO DE MIRACATU, no interior de São Paulo, nunca tinha visto tanta gente importante. Na tarde de 27 de agosto, membros do alto escalão do governo federal estiveram no município de 20 mil habitantes para ouvir mais de 100 empresários, posseiros e proprietários rurais afetados por demarcações de terras indígenas.
Organizada por Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, a audiência pública na pequena cidade do Vale do Ribeira contou com a presença do presidente da Funai, Marcelo Xavier da Silva, do secretário-adjunto de Nabhan, dos superintendentes do Ibama e do Incra em SP, da diretora da Funai responsável pelas demarcações e de um representante do governo de São Paulo. Apesar do batalhão de autoridades, o evento não constou na agenda oficial de Nabhan nem de Xavier da Silva.
Era a segunda visita de Nabhan à região. Em julho, ele se reuniu com produtores rurais afetados por nove terras indígenas identificadas pela Funai entre 2016 e 2017 no Vale do Ribeira. O convite ao secretário partiu do Sindicato Rural de Miracatu, entidade que questiona três desses territórios.
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Renato Bolsonaro conversa com o ruralista Nabhan Garcia durante a audiência. 
Fernando Martinho/Repórter Brasil
Para atrair Nabhan duas vezes à pequena cidade em menos de dois meses, o sindicato contou com a influência do político e empresário Renato Bolsonaro, irmão do presidente da República. “Ele pode até ter ajudado [a trazer Nabhan], mas não vejo conflito de interesse”, afirma Joaquim Fernandes Branco, o ‘Tico Bala’, presidente do sindicato rural e aliado político de Renato. Em 2016, Tico Bala foi vice de Renato, que concorria pelo PR à prefeitura da cidade. Ficaram em terceiro lugar, com 21% dos votos.
Antes da campanha de 2016, o irmão mais novo de Bolsonaro foi exonerado do cargo que ocupava na Assembleia Legislativa de São Paulo após uma reportagem do SBT revelar que ele não aparecia para trabalhar – apesar do salário de R$ 17 mil. À época, Renato disse que havia deixado o cargo para disputar a prefeitura de Miracatu.
Comerciante conhecido na cidade – por causa do sobrenome e pelas tentativas de se eleger prefeito e vereador –, Renato assistiu à audiência, mas não pegou o microfone. Circulou pela sessão discretamente, deixando a sala inúmeras vezes para falar com políticos e empresários locais. Agiu como anfitrião ao receber os convidados especiais, mantendo conversas informais com Nabhan e seus assessores.
Também estavam na audiência cerca de 40 indígenas guarani mbya, embora não tivessem sido convidados pelo Ministério da Agricultura ou pela Funai. Foram chamados de “paraguaios” pelo advogado do sindicato rural de Miracatu, e escutaram do presidente da Funai a promessa feita aos produtores de reavaliar as terras indígenas. Saíram de lá com a certeza de que os processos de demarcação estão ameaçados.
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Saulo Guarani Ramires mostra a área da terra indígena Amba Porã, cujos limites foram identificados pela Funai em 2016.
 
Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Reservas na Mata Atlântica

O Vale do Ribeira, onde o presidente e os cinco irmãos foram criados, abriga a maior área contínua de Mata Atlântica do país e duas terras indígenas já regularizadas pelo governo federal. Desde 2016, a Funai identificou outras nove áreas como pertencente a indígenas, em processos ainda não finalizados. Elas somam 25 mil hectares – área maior do que a cidade de Recife – e se sobrepõem a terras ocupadas por incorporadoras, pecuaristas, empresários, bananicultores, posseiros e pequenos agricultores.
Com a eleição de Jair Bolsonaro – que cresceu em Eldorado, a 100 km de Miracatu –, a expectativa dos produtores locais é de permanecerem nas terras, já que o presidente da República prometeu diversas vezes não regularizar nenhum território indígena em seu mandato.
“Pelo que o chefe da Funai falou na audiência, sobre a possibilidade de redução da área [indígena], vai ser ótimo. Não vai ter atrito”, me disse Alex Campreguer, que tem uma plantação de 10 mil pés de banana no bairro Santa Rita do Ribeira, onde foi identificada pela Funai a terra indígena Amba Porã, em Miracatu.
Se essa área for oficialmente demarcada, 35 ocupantes não indígenas do território serão retirados, entre posseiros (sem escritura da terra) e proprietários rurais. Em Miracatu também foram identificadas pela Funai as terras indígenas Djaiko-Aty e Ka’Aguy Mirim, que afetam os imóveis de outros 50 produtores rurais.
Durante a audiência pública, o presidente da Funai afirmou que vai analisar esses três processos de demarcação, além dos laudos técnicos elaborados por seus subordinados. “Anotei os números dos processos e faço questão de olhar com mais calma e dar uma satisfação aos senhores”, disse Xavier da Silva. “A quem interessa o conflito [por terras]? Não seria melhor conversarmos e vermos um ponto comum?”, completou.
Para o Ministério Público Federal, no entanto, essas três terras indígenas já foram reconhecidas e identificadas pela área técnica da Funai, em processo que inclusive rejeitou a contestação feita pelo Sindicato Rural de Miracatu.
“Qualquer reabertura de discussão dentro da Funai significaria uma ingerência política em um processo técnico. Não há precedentes de a Funai desfazer passos já aprovados. Se isso acontecesse, seria inédito e muito grave”, me disse o procurador Yuri Corrêa da Luz. Ele destaca que o MPF está acompanhando o caso, “pois há indicativos de que existe um movimento contrário às demarcações no Vale do Ribeira, mas que não se sustenta juridicamente”.
Das outras seis terras indígenas em processo de demarcação na região, duas também tiveram seus processos finalizados pela área técnica da Funai e aguardam serem enviadas para o ministro da Justiça Sérgio Moro, responsável por assinar a demarcação (que depois deve ser homologada pelo presidente). Segundo o procurador, as outras quatro estão na fase de análise da contestação, em que a Funai analisa os pedidos contrários à demarcação – etapa final do processo.
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Sentado na primeira fila, Renato Bolsonaro (o 2º da esquerda para a direita, de camisa polo cinza) acompanha a audiência pública para ‘discutir questões fundiárias’.
 
Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil

A visita de uma ‘amiga’

Na audiência pública em Miracatu, o presidente da Funai estava acompanhado pela advogada Silmara Veiga de Souza, recém-nomeada diretora de Proteção Territorial do órgão, o departamento responsável pelas demarcações. Ela é natural de Iguape, também no Vale do Ribeira, onde foi identificada a terra indígena Ka’Aguy Hovy.
Souza é conhecida entre os guaranis por ter advogado para duas incorporadoras e outros 18 clientes na ação que contesta a Ka’Aguy Hovy. Deixou o caso em julho, pouco antes de assumir o posto na Funai. Começou a trabalhar no órgão indigenista no início de agosto, mas sua nomeação foi publicada apenas em 2 de setembro.
‘A proposição é que as coisas sejam feitas de mãos dadas. Eu vi isso quando os indígenas deram as mãos para dançar.’
No dia seguinte à audiência pública, Souza e o presidente da Funai visitaram duas aldeias dentro do território questionado pela advogada. “A senhora está vindo como defensora de imobiliária ou como diretora [da Funai]?”, perguntou Luiz Karai, liderança da Comissão Guarani Yvyrupa, em vídeo gravado pelos indígenas e obtido pela Repórter Brasil.
“Eu não venho como diretora da Funai porque não estou nomeada, e não venho como advogada. Venho como amiga fazendo uma visita”, respondeu. “A proposição é que as coisas sejam feitas de mãos dadas. Eu vi isso quando os indígenas deram as mãos para dançar. Esse é o caminho, todos nós darmos as mãos como amigos para discutirmos nossas questões”, disse.
Karai me disse que a resposta da advogada deixou a comunidade “ainda mais em dúvida” sobre suas intenções. “A doutora Silmara é contra a demarcação e a favor do interesse dos proprietários, mas se identifica como amiga dos índios?”, questiona. “Qual o interesse por trás disso? A audiência pública e a visita deles nos deixaram mais preocupados”, completa.
A nova diretora da Funai não atendeu aos meus pedidos de entrevista, mas informou que está impedida de atuar, dentro do órgão, no processo de demarcação que ela contestou. A Funai não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Nabhan negou a influência de Renato Bolsonaro na realização da audiência pública. “Eu recebi um convite das autoridades, e não do irmão do presidente”, disse. Tico Bala, no entanto, admitiu que foi o sindicato quem convidou o secretário para conhecer “o problema de Miracatu”. Já Renato Bolsonaro, que está em ascensão no PSL do estado e é atualmente responsável por campanhas de filiação no Vale do Ribeira, não atendeu aos meus pedidos de entrevista.
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O presidente do Sindicato Rural de Miracatu, Tico Bala, foi quem convidou Nabhan Garcia para ‘conhecer os problemas da região’. Em 2016, ele foi vice de Renato Bolsonaro na disputa à prefeitura de Miracatu.
 
Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Demarcação pela ‘via política’

O principal argumento dos produtores rurais contra as terras indígenas do Vale do Ribeira é o fato de as aldeias terem se formado após 1988, quando a Constituição reconheceu os “direitos originários” dos indígenas sobre suas terras. Essa tese foi usada no laudo de contestação às comunidades indígenas de Miracatu – assinado pelo antropólogo Edward Luz em nome do sindicato rural. “Não faz sentido querer invadir uma área em 2004 e reivindicar como habitação tradicional permanente”, diz ele, que é conhecido como “antropólogo dos ruralistas” por já ter contestado mais de 20 terras indígenas no país.
Reivindicação antiga da bancada ruralista, o chamado “marco temporal” propõe demarcar apenas os territórios com ocupação indígena antes de 1988. Essa norma ainda será julgada pelo Supremo Tribunal Federal, mas o presidente da Funai tem outro entendimento.
‘O governo está tentando revisar áreas indígenas pela via política, e não pela via técnica e antropológica.’
Xavier da Silva disse que o STF “pacificou” a questão e que um parecer da Advocacia-Geral da União de 2017 determina sua aplicação. “O parecer é vinculante para a administração pública”, ele me disse, em uma sinalização de que o poder público já seria obrigado a aplicar o “marco temporal”.
No entanto, os 11 ministros do Supremo decidiram em fevereiro que o julgamento definitivo acontecerá na análise do Recurso Extraordinário 1.017.365, ainda sem data para acontecer. A Procuradoria-Geral da República considerou o parecer da AGU, em 2018, como “inválido e impraticável”.
“Esse parecer da AGU foi desmoralizado pelo Supremo, que ainda vai decidir a questão. O governo está tentando revisar áreas indígenas pela via política, e não pela via técnica e antropológica, que seria a única possível”, diz Cleber Buzatto, secretário-executivo do Cimi, o Conselho Indigenista Missionário.
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“Dizem que atrapalhamos o desenvolvimento econômico da região e que vamos expulsar nossos vizinhos, que vamos roubar suas terras. Mas é tudo blasfêmia”, diz o professor Saulo Guarani Ramires, da terra indígena Amba Porã.Fotos: Fernando Martinho/Repórter Brasil

A retomada dos indígenas

As matas e os rios do Vale do Ribeira guardam registros da tradicional presença de índios guarani. Não é à toa que boa parte dos municípios da região possuem nomes indígenas, como Miracatu, que em guarani pode ser traduzido como “lugar hospitaleiro”.
No entanto, as disputas de terra entre indígenas e colonos ali são de longa data. Os estudos da Funai para demarcação revelam que, no século 19, os índios eram capturados para trabalhar para famílias ricas, o que os obrigou a fugir e se espalhar pela região.
Em 1907, cartas escritas por guaranis ao pintor Benedito Calixto denunciam colonos vivendo com “papéis falsos” dentro da aldeia Rio do Peixe, que era então formalmente reconhecida pelo governo federal. Os índios pedem “proteção” ao influente pintor. Não deu certo. Eles foram expulsos da área, onde fica hoje o município Pedro de Toledo, a 30 km de Miracatu.
Quase 100 anos depois, Saulo Guarani Ramires e seus familiares estabeleceram na região a aldeia Ko’? Ju, a única da TI Amba Porã, onde vivem hoje 52 pessoas. “Meu avós e bisavós eram daqui. Em 2004 viemos com nossas lideranças para reconhecer os locais onde eles viveram”, conta o professor indígena.
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Carta da indígena Benedicta Ribeiro, moradora do aldeamento do Rio do Peixe, ao pintor Benedito Calixto, em fevereiro de 1907, em que ela afirma existirem ocupantes com documentos falsos em suas terras (
 
Reprodução: Arquivo Público do Estado de São Paulo
Uma parte dos 35 produtores afetados pelos 7,2 mil hectares de Amba Porã são pequenos agricultores sem escritura da terra que trabalhavam para o antigo dono do local. Os posseiros receberam as propriedades como pagamento de dívidas trabalhistas.
Um deles é o agricultor Aldo Voigt, de 70 anos, que vive ali desde os 17. Ele afirma que já tentou registrar a terra por usucapião, mas perdeu a ação. “Eu acho um absurdo [os limites da terra indígena]. Gostaria que respeitassem a nossa área. A gente não quer ser desapropriado”, diz Voigt, dono de 12 mil pés de banana.
Lideranças indígenas afirmam que o Sindicato Rural de Miracatu tem repassado informações “falsas” aos produtores afetados, principalmente com relação às indenizações e a forma em que se dará a retirada dos agricultores.
“Os políticos usam um tom muito ríspido para se referir a nós. Dizem que atrapalhamos o desenvolvimento econômico da região e que vamos expulsar nossos vizinhos, que vamos roubar suas terras. Mas é tudo blasfêmia”, diz Ramires. “O que não conseguimos entender é de onde eles compraram a terra. Estão ali há 100 anos? De quem comprou? Estamos aqui há 500 anos”, afirma.
“Ninguém quer tomar as terras deles, mas é injusto tomar terra de produtor que está há 100 anos lá, e sem direito de indenização de nada”, rebate Tico Bala, presidente do sindicato.
A legislação, contudo, prevê indenização para construções e plantações presentes na área. Terras produtivas rendem valores mais altos. Não há pagamento pela terra em si, mas os pequenos produtores são reassentados em áreas equivalentes. Até que todo o processo se conclua e a indenização seja calculada e paga, os não indígenas permanecem na terra.
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O secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Antonio Nabhan Garcia.
 
Foto: Ferdinando Ramos/Folhapress

Guarani ‘paraguaio’

Fazendeiro paulista com terras no Mato Grosso do Sul, Nabhan interfere nos rumos da Funai desde o início da gestão Bolsonaro. O presidente manteve a demarcação de terras indígenas no Ministério da Agricultura até maio deste ano, quando foi impedido pelo Congresso. Uma segunda tentativa de Bolsonaro foi barrada pelo STF. Para manter influência na autarquia, Nabhan nomeou Xavier da Silva para a presidência do órgão, um delegado da Polícia Federal que já trabalhou para a bancada ruralista.
Ele assumiu o posto no lugar do general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas, de ascendência indígena, que deixou o cargo por pressão da bancada ruralista. “Quem assessora o senhor presidente [Bolsonaro] não tem conhecimento de como funciona o arcabouço jurídico que envolve a Funai (…). E quem assessora o senhor presidente é o senhor Nabhan. Que, quando fala sobre indígena, saliva ódio”, disse o general a servidores da Funai no dia de sua saída, em relato divulgado pela Folha de S.Paulo.
Na audiência, porém, o clima entre Nabhan e os guarani foi amistoso. O vice-ministro destacou que o objetivo era ouvir todas as partes envolvidas, mas fez questão de perguntar aos indígenas onde eles tinham nascido e quando chegaram ao Vale do Ribeira.
Ao final da sessão, posou para fotos, sorriu, cumprimentou os indígenas e arriscou algumas palavras em guarani ao se despedir do cacique Timóteo Verá Tupã. Nabhan contou que aprendeu algumas expressões em suas terras na fronteira com o Paraguai, onde chegou a empregar índios guarani. Mas o cacique estranhou a pronúncia do secretário. “Ele falou numa linguagem do guarani paraguaio, que não tem a ver com o guarani que a gente fala aqui”, disse Timóteo.