A frase que dá nome a este blog foi proferida por Jim Hansen, pesquisador senior da NASA, preso num protesto em frente à Casa Branca. Refere-se à necessidade de que os cientistas do clima comuniquem à sociedade seus conhecimentos pois estes se relacionam a questões cruciais para o futuro do gênero humano e da vida no planeta. O megafone da foto simboliza essa atitude de falar sobre o risco climático em voz alta, de forma enfática e com o maior alcance possível.
https://oquevocefariasesoubesse.blogspot.com/2019/07/eles-sabiam-verdadeira-conspiracao-por.html?showComment=1569460725732#c2834734600129696554
sexta-feira, 26 de julho de 2019
ELES SABIAM: a verdadeira conspiração por trás da questão climática
O problema dessas “teorias” (usado de maneira imprópria, pois nada tem a ver com o uso da palavra nas ciências) é duplo: se as pessoas levam a sério as mentiras, podem ignorar evidências reais ou até militar por causas inexistentes; se dão de ombros para qualquer suposta conspiração, afinal a maior parte é pura invencionice mesmo, podem terminar não dando a devida atenção aos (raríssimos) casos em que uma conspiração (ou algo parecido) realmente exista.
Nestes tempos de vazamento de informações à la Wikileaks e Vaza-Jato, a divulgação de um certo material passou bastante despercebido, mas não deveria. Afinal, ele mostra, como veremos, que a indústria fóssil sabia há muitos anos do risco de caos climático e que o negacionismo climático jamais teve qualquer fundamento em debate científico real; pelo contrário, é uma cria de laboratório dessa mesma indústria, que montou uma enorme fraude - que persiste até hoje - apenas para defender seus interesses. Leiam. Até o fim.
A MUDANÇA DO CLIMA NO RADAR DA INDÚSTRIA FÓSSIL: O RELATÓRIO STANFORD
Capa do relatório “Fontes, Abundância e Destino de Poluentes Atmosféricos Gasosos”, de 1968. Fonte: https://www.smokeandfumes.org |
Principais responsáveis pela extração, processamento e queima desses combustíveis, a mudança climática já estava no radar das grandes corporações petroquímicas há muito tempo, na verdade muito antes de a Organização das Nações Unidas convocar especialistas para comporem um painel sobre o tema (o IPCC, criado em 1988).
Com efeito, há mais de meio século, em 1968, o American Petroleum Institute (API) encomendou um relatório a ser preparado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Stanford. Ressalte-se que o API é a principal associação comercial da indústria do petróleo e gás dos EUA, reunindo 650 companhias, inclusive a Exxon, a Chevron e os braços estadunidenses da Shell e da BP. O objetivo do relatório era saber, de especialistas, quais os possíveis impactos da extração e queima de combustíveis fósseis sobre o clima, pois isso poderia vir a afetar em algum momento a lucratividade dessas empresas.
Quais as conclusões do relatório Stanford? O mesmo alertava que “a humanidade está realizando um vasto experimento geofísico” e que “mudanças significativas de temperatura quase certamente devem ocorrer em torno do ano 2000, trazendo consigo mudanças climáticas”.
O QUE A EXXON SABIA SOBRE O RISCO CLIMÁTICO AO FINAL DOS ANOS 1970
Slide apresentado por James Black à direção da Exxon, com resultados de simulação climática, incluindo projeção para o futuro. Fonte: https://insideclimatenews.org |
A falta de qualquer desdobramento concreto a partir do Relatório Stanford já era um indício de que a indústria petroquímica não havia ficado feliz com as conclusões do mesmo e, nesse contexto, a Exxon resolveu ela mesma realizar estudos sobre as possíveis alterações do clima causadas pelas emissões de CO2 resultantes de sua atividade.
Nos anos 1970, ela montou um grupo de pesquisa, com um orçamento não desprezível, para por meio de gente "de dentro" responder à questão se queimar petróleo traria riscos para a estabilidade climática do planeta ou não. O grupo era liderado por James F. Black, pesquisador sênior do Departamento de Pesquisa e Engenharia da Exxon, ligado à companhia desde a sua antecessora (a Standard Oil), e que gozava da confiança dos seus chefes.
Já em 1978, James Black apresentou projeções de aquecimento global que são incrivelmente parecidas com aquelas produzidas pela comunidade de clima muitos anos depois. A hipótese é que, extrapolando o crescimento das emissões, poderíamos duplicar ou até quadruplicar a concentração de CO2 até 2075. A projeção climática correspondente apontava para um aquecimento em torno de 1-2°C após o ano 2000 (em 2016 chegamos a 1,2°C de anomalia de temperatura em relação ao período pré-industrial) e um valor mais provável em torno de 3°C em meados deste século.
O nível de sofisticação da simulação era atestado pela projeção de padrões que começam a ser observados e que passaram a constar das simulações realizadas pela comunidade científica de clima vários anos depois, incluindo: 1) Um aquecimento bem mais acelerado no Ártico do que em latitudes mais baixas; 2) O resfriamento da estratosfera, em contraste com o aquecimento da superfície e da troposfera, que consiste em uma das maiores evidências de que o aquecimento global está relacionado à redução da radiação infravermelho que escapa da troposfera em função do aumento da intensidade do efeito estufa e não a um aumento da atividade solar ou algo do gênero e 3) O reconhecimento de que os impactos sobre a temperatura global perdurariam por milênios mesmo que as emissões fossem interrompidas em algum momento permitindo que o planeta voltasse a resfriar.
Efeito de um "pulso" de emissão de CO2 na escala de milhares de anos, na simulação de Black, que criou o termo "super-interglacial". |
Black também falava em uma janela “de cinco a dez anos” antes de tomar medidas drásticas para mudar o modelo energético. Em outras palavras, nos bastidores da Exxon, tanto o risco de um aquecimento global descontrolado quanto a necessidade de termos iniciado na década de 1980 uma transição energética que nos livrasse dos combustíveis fósseis, já eram conhecidas.
Mas o que a Exxon fez a partir disso? O desenrolar dessa história não chega a ser de todo surpreendente, mas não é por isso que deixa de ser profundamente indignante.
A OPÇÃO CONSCIENTE DA EXXON PELO DESASTRE CLIMÁTICO
Trecho de documento da Exxon, disponibilizado por ClimateFiles. Com uma dose extraordinária de maldade, o documento propõe, como objetivo da campanha de comunicação, fazer com que os defensores do Protocolo de Kyoto parecessem "fora da realidade" |
Em 1982, a Exxon encerrou o programa de pesquisas em clima. Tudo que havia sido produzido foi engavetado e a companhia passou a articular-se com grupos de direita e think tanks conservadores a fim de iniciar uma cruzada para esconder a verdade sobre o risco climático. Desde então, a Exxon financiou diversos grupos negacionistas, tendo transferido para eles mais de 30 milhões de dólares.
Não foi algo feito de maneira aleatória. F oi caso pensado, com tática e estratégia. Os documentos internos da Exxon demonstram isso. Havia um "Plano de Comunicação da Ciência do Clima Global", cujo propósito era o de reformatar completamente o debate público sobre a questão climática que então se iniciava, após a criação da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (a UNFCCC) e a realização da Eco-92 e das primeiras Conferências das Partes (COPs), processo que viria a desaguar no (muito tímido) Protocolo de Kyoto.
Estratégias e táticas da coalizão liderada pela Exxon em seus ataques à Ciência do Clima. Documento disponibilizado via ClimateFiles. |
Embora não fossem exatamente novas, já que tudo fora inspirado na sabotagem anticiência feita anos antes pela indústria do tabaco, o nível de detalhamento das estratégias e táticas da "coalizão" não deixa margem para dúvidas de como a Exxon e seus comparsas conspiraram contra a comunidade científica, contra o interesse público, contra a humanidade e a biosfera, unicamente para defender seus lucros. Era necessário recrutar pessoas dentro da academia (em todo lugar sempre tem algum sujeito de caráter duvidoso disponível para vender a alma, não é?). Daí, seria necessário cavar espaço dentro da mídia, via editorias de ciência, cartas e editoriais escritos por esses "cientistas" recrutados, promover palestras de negacionismo junto a universidades, sindicatos, comunidades etc. Imaginem o que não constaria do plano se naquela época já existissem o YouTube, o WhatsApp, o Facebook, o Instagram etc...
Potenciais financiadores e implementadores do projeto da "coalizão" anticiência. |
BREVES FRASES FINAIS SOBRE A IMPOSSÍVEL "CONSPIRAÇÃO DE CIENTISTAS"
As corporações capitalistas têm um interesse que, para elas, está acima de tudo: o próprio lucro. Às escondidas da opinião pública, à revelia do interesse da maioria das pessoas e por meio de suas associações e com recursos generosos, essas corporações têm todas as condições - e o motivo - para conspirarem na defesa desses interesses. E como mostramos, essa conspiração não apenas aconteceu como deixou-nos um legado maldito: o negacionismo climático, hoje multiplicado e difundido muito mais rapidamente através dos meios digitais.
Por outro lado, falar em "conspiração de cientistas" é um total contrassenso. Primeiro, porque a motivação do trabalho científico em geral não é o dinheiro. Em outras atividades, pessoas com a alta qualificação dos cientistas poderiam ganhar muito mais. Segundo, porque os cientistas são bem mais competitivos entre si do que corporativistas. A ideia de superar o trabalho do colega, ou até desbancar o entendimento científico vigente sobre determinado assunto é atraente. Traz prestígio, publicações em revistas conceituadas (como Science e Nature), citações. Mas terceiro e principalmente porque não é da natureza do fazer científico. Mesmo com as imperfeições e limites individuais e coletivos, a ciência se guia pelas evidências e os pontos de vista são moldados de tal modo que, mais cedo ou mais tarde, essas evidências prevalecem e, se for o caso, até mesmo uma revolução científica se impõe.
Não é que nós, cientistas, sejamos vestais, ou que entre nós reine uma pureza moral e ética que impeça desvios individuais e/ou temporários, alguns deles graves, incluindo fraudes científicas. Mas simplesmente que não faz sentido esperar que sejamos capazes de uma conspiração que efetivamente envolva milhares de cientistas e pesquisadores, estudantes e técnicos, todos imbuídos de um único propósito espúrio, que no fim das contas ninguém consegue dizer direito qual seria: vender bicicletas e paineis solares, atrapalhar a competitividade econômica dos países ricos, conter o desenvolvimento dos países pobres ou sabotar a economia como um todo? Desculpem, mas - diferente da indústria do tabaco e da indústria do petróleo - não temos "competência" para isso. Uma conspiração de cientistas daria errado. A não ser a conspiração de levantar evidências, se aproximar da verdade e melhor entender a realidade que nos cerca.
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