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Boaventura de Sousa Santos é um intelectual, cientista social, escritor e, sobretudo, educador português. Por isso, olha com preocupação para os caminhos que o atual Ministério da Educação (MEC) tem traçado para o Brasil. “O que é trágico nesse momento do país é que as fábricas do ódio, do medo e da mentira estão se transformando nas políticas públicas de educação”, opina ele. Mesmo que de longe, lá de Portugal, onde dirige o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e dá aula na Faculdade de Economia – que, inclusive, ajudou a fundar em 1973 – Boaventura tem um olhar especial sobre o Brasil. A tese de doutorado dele, Direito dos Oprimidos (Editora Almedina, 2014), defendida na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, é uma análise da vida na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, escrita em plena Ditadura Militar brasileira. Na época, diz ele no livro, por medo de expor aqueles que o acolheram tão bem, batizou o estudo de Pasárgada, aquele poema de Manuel Bandeira. Mesmo que, por aqui, não fosse amigo de rei algum. Hoje, além de Coimbra, ele pesquisa na Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, e é Global Legal Scholar na Universidade de Warwick, na Inglaterra. Também dirige o projeto ALICE - Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências o mundo, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação. Conversamos com ele na 11ª Bienal da União Nacional dos Estudantes, onde falou sobre o que mais gosta: educação, inclusão e justiça social. A cada passo que dava, brotavam dez estudantes que pediam uma palavra, um abraço, uma foto. Também participou de um tour na Ilha de Maré, sobre a qual, em 2018, escreveu um artigo em denúncia à poluição na área. A Muito, falou sobre o futuro da ciência, da educação e das nossas heranças coloniais. Um futuro que, esperemos, não demore de chegar.
O senhor defende em Um discurso sobre as ciências que a ciência e seus métodos que vêm regulando a sociedade há séculos estão em crise. Por quê?
Fundamentalmente, a crise é também uma oportunidade para a ciência, e consiste basicamente na ideia de que a ciência é um conhecimento válido, mas não é o único conhecimento válido na sociedade. A ciência não pode ter a pretensão de avaliar a validade de outros conhecimentos porque há conhecimentos espirituais, populares, dos povos indígenas, das populações ribeirinhas, que têm outros critérios de validade dos seus conhecimentos. Portanto, há vários critérios de validade, e a ciência, hoje, tem que conviver com isso. Para mim, a evolução desse discurso, que já é de um livro antigo, foi tentar mostrar que o que nós precisamos no mundo e nas universidades é de uma ecologia do saber, é a convivência entre os diferentes conhecimentos, nos quais o conhecimento científico é fundamental, mas não é o único.
É isso o que o senhor quer dizer quando fala que a ciência atual é uma narrativa?
Sim, é a ideia de que não há verdade na ciência, a rigor. Se houvesse verdade, era eterna e para sempre. O que há é a busca da verdade. Nós, os cientistas sociais, os cientistas em geral, temos essa grande missão de mostrar a verdade. Todo o nosso trabalho é um trabalho objetivo, e essa é a busca da verdade. Ser objetivo não quer dizer que sejamos neutros. Sabemos que há injustiças na sociedade, e a nossa ciência visa contribuir para a justiça social, para a democracia, para o bem-estar dos povos. Portanto, objetividade não quer dizer neutralidade.
Há como a ciência tradicional sair dessa crise ou é um processo natural e irreversível?
Não, há muitos cientistas que continuam – e também depende muito das disciplinas – a defender o que nós designamos por positivismo. E é exatamente essa ideia de que só há uma maneira correta de fazer ciência e que a ciência é o único conhecimento válido. Nem uma coisa nem outra são verdadeiras hoje, de fato. Grandes cientistas mulheres, quando as mulheres entraram na ciência, e com muita força, sobretudo nos últimos 40 anos, mostraram que havia diferentes meios de fazer ciência. Até na biologia, por exemplo, nas ciências da evolução. E, como digo, há vários conhecimentos que têm seus critérios de validade.
O projeto Escola sem Partido incentiva os alunos a gravarem os professores em sala de aula e a denunciarem caso eles comentem temas fora da ementa. É quase como uma caça às bruxas. Também propõe regular a atividade de grêmios estudantis. Para o senhor, quais os riscos para a democracia?
O Escola sem Partido é um atentado contra a democracia. É a institucionalização da censura, porque uma escola sem partido é uma escola de um partido, de um partido único, da ideia de que só há um pensamento válido, que é aquele que é difundido e defendido por aqueles que estão no poder. E, portanto, tudo aquilo que diverge desse saber e dessas ideias é considerado ideologia. Quando a gente transforma toda a diversidade de conhecimentos e opiniões em ideologia, estamos a fazer a pior das ideologias. E pensar que eles dizem que não têm ideologia, mas é a mais reacionária, mais conservadora e mais censória. Um atentado contra a democracia e obviamente contra a educação, em particular.
O Instituto Nacional de Educação de Surdos, ligado ao Ministério da Educação, retirou, sem explicação, as obras do senhor do catálogo online. O que o senhor pensa sobre isso?
Isso acontece exatamente pela dinâmica da Escola sem Partido. Meu trabalho é um trabalho crítico, é um trabalho que não agrada, naturalmente, às autoridades que estão neste momento no poder. É o mesmo que acontece com uma das maiores filósofas deste país de todos os tempos, que é a Marilena Chauí, considerada internacionalmente a melhor especialista de Espinosa, e cujas obras também são postas no index, digamos assim, quase como no tempo da Inquisição. É, fundamentalmente, destruir a diversidade de opiniões, recusar o diálogo. Eu gosto muito que haja críticas duras ao meu trabalho, que me confrontem, o que eu não quero é que proíbam que as minhas ideias circulem.
Quais seriam as consequências, no futuro, dessas denúncias na educação das próximas gerações?
Não tem futuro. Se o Escola sem Partido tiver futuro, o Brasil não tem futuro. Isto é, vai fechar-se num mundo anacrônico, num mundo de um passado que nunca existiu, mas que é considerado um passado glorioso, em que os brasileiros todos se entendiam, em que não havia violência, em que as mulheres estavam postas nos seus lugares e, portanto, eram inferiores ao homem porque são naturalmente inferiores. Os negros eram serviçais porque essa é a missão que eles devem ter. Se eles conseguissem impor essa ideologia, o Brasil não teria futuro. A minha esperança é que a Escola sem Partido será conquistada pelos estudantes, estará conquistada por todos os democratas brasileiros e nunca será posta em prática, pelo menos não nesses termos.
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A esquerda tem que fazer uma revolução nas áreas da comunicação, na forma como conversa
Boaventura de Sousa Santos
Também vivemos um momento em que figuras políticas importantes defendem a educação em casa e a educação a distância para crianças. Ou seja, crianças fora das salas de aula. O senhor acha que pode funcionar?
Há várias considerações. É evidente que, em princípio, a educação a distância foi uma grande iniciativa para fazer chegar ao processo educativo as populações remotas que não tinham a possibilidade de ter uma educação por outros meios. Então, tem o aspecto positivo. E a educação na família, obviamente que as famílias deveriam ser educativas, isto é, deveriam também contribuir para a educação dos filhos e não deixar que a escola tenha o monopólio dessa educação. Agora, quando defendem essas ideias, defendem por outras razões, e essas razões são erradas e condenáveis. A escola a distância, fundamentalmente, é a ideia de evitar o contato presencial entre o professor e o aluno, que pode ser um contato muito rico, muito enriquecedor e de diálogo. Querem criar essa distância e, além do mais, querem poupar dinheiro. É, fundamentalmente, uma questão financeira. E a questão da família é porque eles sabem que os brasileiros confiam nas suas famílias, as famílias são conservadoras e, portanto, será a grande garantia da contribuição de uma educação conservadora, capitalista, colonialista e até patriarcal, que é o objetivo deles.
Nas últimas eleições presidenciais do Brasil, surgiu uma crítica de que a esquerda parou de falar com a população. O discurso se tornou mais universitário, distante das pessoas. O senhor acha que esse distanciamento tem feito a esquerda perder a força no mundo?
Sim, eu acho que há uma contraverdade nisso, eu acho que essa crítica tem sido feita em vários países. E eu tenho dito que se cometeram muitos erros, e esses erros têm que ser analisados, tem que se fazer, por assim dizer, uma autocrítica, a própria esquerda tem que fazer uma autocrítica. Realmente, a luta institucional, sobretudo a luta partidária, muitas vezes obrigou que se perdesse o contato com as populações e com alguns anseios, como, por exemplo, a necessidade de segurança das populações periféricas, com quem é preciso se falar para podermos saber efetivamente o que elas sentem no seu cotidiano. Ora bem, são as igrejas conservadoras e reacionárias que hoje estão presentes nas periferias, e não as Comunidades Eclesiais de Base, que eram progressistas e que deixaram de estar. Os partidos de esquerda que tinham seus grupos populares de bairro, os seus círculos de cultura de que falava o Paulo Freire, também se foram perdendo. Eu acho que a esquerda tem muito que voltar a saber falar com as populações, como tem outros erros, mas é evidente também que o que se passou no Brasil não se explica apenas pelos erros da esquerda. Explica-se, sobretudo, por uma intervenção imperial muito forte dos Estados Unidos que não poderia perdurar. Queriam que os recursos naturais riquíssimos do Brasil estivessem fora do alcance das empresas multinacionais brasileiras, como era o caso do pré-sal e, portanto, não queriam de maneira nenhuma que o Brasil se tornasse uma potência internacional, como são os Estados Unidos. Então, isso também ajuda a explicar o que se passou.
Ultimamente, temos visto no Brasil uma tentativa de alguns grupos de apagar ou distorcer a história, como quando disseram, no período eleitoral, que o nazismo é uma ideologia de esquerda. A embaixada alemã precisou desmentir o boato…
Essa é uma das maiores fake news que eu conheço, dá vontade de rir, se não fosse uma tragédia. É porque é evidente que os nomes, por vezes, atraiçoam, e, como sabe, o nome do partido nazista era Nacional Socialismo. Porque, naquela altura, havia uma ameaça comunista, e essa extrema-direita que estava a girar achou que para conquistar o operariado era preciso dizer que também era socialista, mas que era nacionalista e que não tinha nada a ver com os comunistas. Agora, foi uma extrema-direita, não uma extrema-esquerda, e a prova é muito simples. Quais foram os partidos que foram proibidos e que foram, aliás, condenados, postos na prisão, torturados e eliminados os seus líderes? Todos os partidos comunistas e socialistas. Se o Nacional Socialismo, se o fascismo de Salazar, ou o de Franco, ou o de Mussolini fossem de esquerda, não tinham mandado para a prisão, para a tortura, para o exílio todos os líderes políticos de todos os partidos de esquerda. Portanto, essa é uma das fake news mais viciosas que eu tenho visto, obviamente para criar confusão e dizer que o petismo, que é um partido democrático, que nunca governou sozinho, governou sempre com a direita, também era socialista, de esquerda e uma ditadura, como o Nacional Socialismo.
Mas o senhor acha que as pessoas, com o tempo, vão realmente passar a acreditar nisso, mesmo depois de ter sido desmentido tantas vezes?
Já tem tido, obviamente, uma influência muito forte, porque tem meios de comunicação que reproduzem. A esquerda tem que fazer uma revolução nas áreas da comunicação, na forma como conversa. Ao nível de redes sociais, mas também ao nível de presença. Isso é um trabalho de educação. Por isso que as universidades, como eu dizia há pouco, e a educação, têm que ter uma luta constante contra as fábricas do ódio, do medo e da mentira. São essas três grandes fábricas que estão a produzir essa ideia de que o nacional socialismo era de esquerda.
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Estamos numa sociedade extremamente desigual, a injustiça social é enorme. Como é que isto não provoca uma revolução?
Boaventura de Sousa Santos
O senhor também fala em descolonizar a educação. Em Porto Alegre, o senhor organizou a proposta da Universidade dos Movimentos Populares, que busca justamente essa transformação nos modos de educar. O senhor pode falar sobre essa ideia de descolonizar a educação?
Descolonizar traz, basicamente, duas ideias. A primeira ideia é a de que o colonialismo não terminou com as independências, mudou de figura. Continuou o racismo, continuou a ideia de que há seres humanos que pela cor da pele são seres inferiores e devem ocupar lugares inferiores na sociedade. E a educação, durante muito tempo, compactuou com essa ideia. O contributo das populações negras ou indígenas para a história do Brasil nunca foi integrado na história. Pelo contrário, se conta a história dos vencedores, onde muitas vezes os heróis eram aqueles que tinham matado mais índios ou os que tinham escravizado mais gente. Há patrões de escravos que foram considerados heróis nacionais em vários países. Ora bem, é uma história completamente feita pelos colonizadores para benefício próprio e não para benefício da população que foi colonizada. Como é que se lutou contra isso? Lutou-se, num primeiro momento, com as ações afirmativas. Essa população que tinha sido considerada inferior também foi tirada das universidades e nunca teve acesso a elas. No Brasil, só no século 21, ou seja, muito mais de 100 anos depois da independência, é que nós vamos ter finalmente o conhecimento de que o Brasil é uma sociedade racista, e que por isso é preciso fazer ações afirmativas contra o racismo tal qual aconteceu nos Estados Unidos há mais de 50 anos. Essa foi a primeira medida. A segunda medida é que não basta integrar nas universidades jovens negros, jovens indígenas ou pobres. É fundamental também mudar os nossos planos de estudo, as nossas histórias, sobretudo. É uma história dos colonizadores, não as histórias que existiam contra o colonialismo, o capitalismo e o patriarcado. Essas são lutas que muitas vezes ficaram por contar e que são hoje contadas pelos rappers, por exemplo.
Essa educação descolonizada é algo que já estamos experimentando?
Está a se fazer lentamente. As ações afirmativas agora são alvo deste governo conservador que está no poder no Brasil. Mas é evidente que está a se fazer em todo o mundo. Na África do Sul hoje, por exemplo, há uma grande frente de luta pelas ações afirmativas e pela integração da população negra nas universidades porque, mesmo com o fim do Apartheid, continuou excluída. E também começa a voltar nas universidades europeias uma luta contra esse pensamento colonizado. Por exemplo, por que é que todos os filósofos nos departamentos de filosofia, e quiçá aqui também no Brasil, são todos homens, brancos e estão quase todos mortos? Quando há mulheres filósofas, quando há grandes filósofos negros, filósofos muçulmanos, hindus, chineses, filósofos de alto gabarito, que foram extremamente inovadores, e que não ficaram no nosso currículo. Há tanto a fazer, mas está a se fazer, normalmente por opção dos estudantes. Ainda na Inglaterra, recentemente, houve exatamente essa reação dos estudantes na Universidade de Londres. E, na segunda semana de julho, vou estar na Universidade de Bristol, na Inglaterra, exatamente para os ajudar num grande seminário que vão realizar sobre a descolonização da universidade inglesa. É um processo que está em curso.
Quais heranças coloniais o Brasil precisa criticar, a seu ver?
Eu observo duas grandes heranças coloniais. Uma é a concentração de terras, o latifúndio, que é uma herança do colonialismo. E a outra é o racismo. E, obviamente, que essas duas grandes heranças precisam ser trabalhadas. Tem que haver uma reforma agrária, uma demarcação das terras indígenas, e tem que haver uma luta constante contra o racismo institucional.
Muitos acreditam que não é possível viver em um mundo socialmente justo. O senhor concorda?
Essa visão faz parte de uma ideologia reacionária que está neste momento no mundo. Se nós virmos que os oito homens mais ricos do mundo têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre da humanidade, ou seja, 3,5 bilhões de pessoas, estamos numa sociedade extremamente desigual, a injustiça social é enorme. Como é que isto não provoca uma revolução? É exatamente pela promoção da ideia de que o problema é na justiça, que todos queriam viver num sistema justo. Não, a justiça não é uma coisa boa, o que é bom é a injustiça. É a ideia de que não há alternativa à sociedade em que nós vivemos. É uma ideologia, sim, uma ideologia perigosa, porque se nós trabalharmos com as comunidades rurais e urbanas nas periferias, o que nós vemos? Vemos muita solidariedade, tentativa de racionar, é a ideia de uma justiça. Nas comunidades indígenas não havia pobreza. Quando havia seca, não havia bens suficientes, todos repartiam. E a abundância também se repartia. Portanto, ninguém ficava na miséria ao lado de uma pessoa muito rica. Estavam todos pobres ou estavam todos ricos. E digo mais: enquanto houver capitalismo, haverá a ideia de socialismo. Por exemplo, os indígenas na região dos Andes são hoje famosos na Bolívia e no Equador por dizerem que a sua ideia de sociedade justa não se chama socialismo, chama-se “bien vivir”, viver bem. O viver bem é viver em harmonia com os outros, com a natureza, não com produtos. É uma ideia de socialismo que vem da cosmologia indígena, e não do pensamento ocidental.
Além de cientista e intelectual, o senhor também é poeta. No poema Um Cigarro no Bradley’s o último verso diz: “Só o fim começa”. Já estamos lá?
(Risos). Não, essa última frase desse livro pode ser lida de muitas maneiras. É a ideia de que realmente não há fins, porque todo fim é sempre um começo. É a minha ideia de lutar contra o fim da história, isto que acabei de dizer, a ideia de que não há alternativa. Há alternativas, e o meu trabalho sociológico, os movimentos sociais, meu Deus, todos eles lutam por alternativas e não podem continuar a viver da forma como vivem, lutar por uma vida digna em posições indignas. Sim, o fim é o começo porque se está sempre a pensar e não há fim no fim.