quinta-feira, 7 de março de 2019

Como fazer as multinacionais pagarem o que devem aos países do Sul


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UMA INSOLENTE RENTABILIDADE QUE ESCAPA DOS PAÍSES HÓSPEDES
Como fazer as multinacionais pagarem o que devem aos países do Sul

EDIÇÃO - 138 | MUNDO


por Léonce Ndikumana
Janeiro 3, 2019

Imagem por Alves

A exemplo da Apple, as multinacionais refinaram suas técnicas de evasão fiscal. O problema se revela mais agudo nos países do Sul, despojados de seus recursos naturais e também descartados das discussões internacionais sobre o aspecto fiscal das empresas. Eles poderiam, contudo, encarnar soluções para apagar parte das injustiças nesse campo

Na nova ordem mundial, as multinacionais detêm um imenso poder econômico e exercem uma influência política decisiva. A falta de coordenação entre os regimes fiscais dos Estados lhes permite minimizar sua subordinação ao imposto, muitas vezes em detrimento dos países em que operam. Essa vantagem é ampliada também pelos paraísos fiscais – como a Irlanda – e pelos centros financeiros offshore1 – como as Bermudas –, que permitem dissimular os fundos transfronteiriços, assim como a identidade dos diretores de empresas e particulares que dela se beneficiam. No sistema atual, o peso do imposto recai então de maneira desproporcional no único fator de produção incapaz de “livre circulação”: a mão de obra.

Uma dificuldade corrompe, por outro lado, a arquitetura política mundial. Enquanto os clubes de elite, como o G20, aumentam sua força, as instituições com funcionamento não exclusivo – como as Nações Unidas – perdem em matéria de influência. Um sistema como esse produz importantes conflitos de interesses: supõe-se que os países-membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) lutem contra a evasão fiscal praticada pelas multinacionais, mas eles pretendem também (e, com frequência, antes de tudo) favorecer a competitividade de suas empresas. Grandes perdedores do fenômeno da pilhagem fiscal, os países em via de desenvolvimento não participam, assim, das discussões sobre as medidas destinadas a atenuá-la. Já passou da hora de imaginar uma nova forma de funcionamento, pois, para os países em via de desenvolvimento, as tarifas dos impostos sobre os lucros das empresas representam uma parte bem grande das receitas fiscais totais. Às vezes, o imposto pago pelas empresas é o único meio de se beneficiar das atividades das multinacionais que operam em seu território, enquanto a maior parte dos rendimentos dessas empresas em geral é rapidamente repatriada. Sem contar que os investimentos externos ligados à exploração de recursos naturais – a grande maioria – criam poucos empregos e geram pouco impacto nas economias nacionais, e se mostram muito mais generosos no que se refere a problemas ambientais…

Improváveis deslocalizações
Nessas condições, na falta de controlar a produção ou de cobrar dessas empresas os devidos impostos, muitos países ricos em recursos naturais revelam receitas fiscais irrisórias. Principal país produtor de petróleo e primeira potência econômica do continente africano, a relação entre as receitas tributárias e o PIB na Nigéria é inferior a 8%, enquanto na França essa taxa é de 33%, na África do Sul, de 26% e, no Quênia, de 19%.2 Os Estados em via de desenvolvimento vão ter de se esforçar para formular estratégias de desenvolvimento e garantir seu financiamento sem aumentar os montantes que arrecadam – situação que os impede de se emancipar da ajuda externa.

Com frequência, essas considerações provocam reprovação. A objeção mais comum: um aumento do imposto para as empresas penalizaria os países, pois desestimula investidores ou faria a pressão fiscal recair nos empregados das empresas-alvo. Todavia, existem poucos elementos para sustentar essa hipótese. Ao contrário, tudo converge para propiciar a extraordinária rentabilidade das multinacionais, particularmente daquelas que se especializam na indústria extrativa e nos serviços. O cenário de acordo com o qual essas empresas iriam embora (ir para onde?) se lhes fosse exigido pagar impostos mais justos é, de fato, realista? Ao contrário, um sistema de tributação das empresas eficaz e justo contribuiria para criar um ambiente propício à atividade econômica nos países em via de desenvolvimento: ele deixaria o sistema fiscal mais previsível, fator importante para tomar decisões racionais sobre investimentos. Sem falar do fato de que grandes grupos que pagassem seus impostos melhorariam sua imagem, com frequência degradada.

Em 2016, aproveitando sua posição estratégica na Irlanda, na Holanda e nas Bermudas, o Google conseguiu escapar de US$ 3,7 bilhões em impostos.3 Essa prática foi facilitada pelas disparidades dos regimes fiscais e pelo fato de as filiais de multinacionais serem consideradas entidades distintas que, portanto, podem ser taxadas independentemente umas das outras. Instituir um sistema que beneficie os países em que elas investem e as empresas implica reformar o sistema atual, estabelecendo um equilíbrio fiscal comum a todos os Estados. A primeira etapa consistiria em abandonar o princípio de separação das entidades jurídicas e basear o imposto nos lucros que a empresa realiza em escala mundial. Evidentemente, nenhuma empresa adotará sozinha esse novo regime enquanto as normas fiscais internacionais permitirem evadir do imposto de maneira legal. Num segundo tempo, uma vez definido esse montante, o imposto que cabe a cada território onde a empresa opera poderia ser determinado por meio de uma distribuição proporcional baseada nos indicadores de medida da atividade econômica que ela ali exerce, principalmente as vendas, os empregos e os ativos. No que diz respeito a essa questão, é possível se inspirar em sistemas fiscais federais instaurados nos Estados Unidos e no Canadá há muitos anos.

Ninguém ignora que a introdução de um sistema de tributação unitário com distribuição proporcional em escala mundial impõe grandes desafios de ordem prática, a começar pela criação de um quadro institucional que permita compensar as desigualdades na redistribuição dos impostos entre os países. Um projeto como esse concernente a todo o planeta poderia – e, sem dúvida, deveria – ser abordado em fóruns em que todos os países sejam representados em pé de igualdade. Os países em via de desenvolvimento não podem se contentar em observar essas discussões das arquibancadas dos salões onde se reúnem os poderosos; eles devem participar ali como parceiros que desfrutam dos mesmos direitos e benefícios, em um processo orquestrado por instituições mundiais não exclusivas como as Nações Unidas.


*Léonce Ndikumana é professor de Economia e diretor do Programa de Política de Desenvolvimento da África do Instituto de Pesquisa Econômica da Universidade de Massachusetts em Amherst, Estados Unidos; é membro da Comissão Independente pela Reforma da Taxação Corporativa Internacional.

1 Os paraísos fiscais e os centros financeiros offshore (CFO) têm em comum um sistema fiscal frágil ou nulo e um ambiente regulamentar favorável à evasão fiscal, com uma supervisão limitada e uma divulgação mínima de informações. Os CFO se caracterizam por uma atividade de serviços financeiros de tamanho desproporcional em relação à economia nacional.

2 “Collecting Taxes Database” [Dados sobre impostos arrecadados], Usaid, Washington, DC.

3 Nick Statt, “Google still exploiting tax loopholes to shelter billions in overseas ad revenue” [Google continua a explorar brechas na tributação para abrigar bilhões da receita publicitária no exterior], The Verge, Nova York, 2 jan. 2018.


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