Entre a espera e a esperança:
reflexões em tempos de pandemia
Por FILIPI AMORIM
~ René Magritte
A espera
e a esperança têm a mesma origem etimológica (do latim spes, sperare),
mas podemos distingui-las. Arrisco-me a defini-las dizendo que toda esperança
comporta, em maior ou menor grau, a espera, mas seu oposto, não: a espera
não representa a esperança autêntica. Assim, podemos experimentar duas
modalidades de esperança: i) a falsa esperança, que tem
como base a espera passiva, acomodada ao fatalismo existencial; ii) a esperança
autêntica, que pressupõe o reconhecimento do absurdo existencial.
Por isso, não há
virtude na aceitação total da vida que nos é imposta senão para que nos
apeguemos à falsa e vã espera disfarçada de esperança.
A esperança autêntica é, pelo contrário, submissa da revolta, e
representa a insubmissão aos desígnios da “sociabilidade”, aqueles que, externos
ao eu, condicionam a existência. Por esta razão, e relembrando Freire, a
esperança é uma vocação ontológica, ou seja, faz parte dos elementos
mais íntimos que nos tornam humanos: a esperança é uma vocação que nos
lança para a liberdade; para um ser mais.
Ser mais
(outro conceito de Freire), significa não sucumbir aos valores e costumes que
conduzem à desumanização, à desvalorização e à exploração da vida, e a outras
formas que nos privam da dignidade, equivalente a tornarmo-nos menos,
ou, em oposição ao que representa o ser mais, ser menos. Por
imposição, submete-se ao ser menos e, depois de tanto esperar, não se
espera mais nada: passa-se a viver sem futuro.
O ônus e o
bônus se confundem entre a espera e a esperança. À esperança
autêntica, é necessária uma profunda reflexão sobre a condição humana,
depositária de uma tragédia intransponível: a morte, destino coletivo da humanidade.
Se a espera é a admissibilidade da sujeição, paradoxalmente, poderá
garantir o que a esperança não tem como obrigação oferecer: satisfação constante,
quiçá felicidade. Experimentar a esperança autêntica é suportar e viver a
dor da lucidez para revoltar-se, dado o reconhecimento do absurdo que nos é
comum, da vida pautada pela consciência da morte. E eis a pergunta que nos é
fundamental: que vida vale a pena ser vivida?
Com a
pandemia, a falsa esperança espera a emergência da solidariedade
espontânea: romantiza-se a doença; declara-se que estamos no mesmo barco. Assim,
fechamos os olhos para o modo como a Covid-19 escancara a injustiça social sob
a qual assentou-se a normalidade. A possibilidade da morte apenas lembrou que
esse é o destino coletivo da humanidade, mas não estamos no mesmo barco,
estamos em alto mar: alguns, em iates; outros, à deriva, teimosa e instintivamente,
agarram-se ao que podem para flutuar. A esperança autêntica conclama que
não voltemos ao que tínhamos como normalidade, pois isso impossibilita o
reconhecimento do absurdo e mantém a sujeição: nenhum flagelo é admissível.
Haverá esperança?
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