sexta-feira, 22 de maio de 2020

Entre a espera e a esperança: reflexões em tempos de pandemia



Entre a espera e a esperança: reflexões em tempos de pandemia

Por FILIPI AMORIM

great hope 1940
~ René Magritte

A espera e a esperança têm a mesma origem etimológica (do latim spes, sperare), mas podemos distingui-las. Arrisco-me a defini-las dizendo que toda esperança comporta, em maior ou menor grau, a espera, mas seu oposto, não: a espera não representa a esperança autêntica. Assim, podemos experimentar duas modalidades de esperança: i) a falsa esperança, que tem como base a espera passiva, acomodada ao fatalismo existencial; ii) a esperança autêntica, que pressupõe o reconhecimento do absurdo existencial.

Por isso, não há virtude na aceitação total da vida que nos é imposta senão para que nos apeguemos à falsa e espera disfarçada de esperança. A esperança autêntica é, pelo contrário, submissa da revolta, e representa a insubmissão aos desígnios da “sociabilidade”, aqueles que, externos ao eu, condicionam a existência. Por esta razão, e relembrando Freire, a esperança é uma vocação ontológica, ou seja, faz parte dos elementos mais íntimos que nos tornam humanos: a esperança é uma vocação que nos lança para a liberdade; para um ser mais.

Ser mais (outro conceito de Freire), significa não sucumbir aos valores e costumes que conduzem à desumanização, à desvalorização e à exploração da vida, e a outras formas que nos privam da dignidade, equivalente a tornarmo-nos menos, ou, em oposição ao que representa o ser mais, ser menos. Por imposição, submete-se ao ser menos e, depois de tanto esperar, não se espera mais nada: passa-se a viver sem futuro.

O ônus e o bônus se confundem entre a espera e a esperança. À esperança autêntica, é necessária uma profunda reflexão sobre a condição humana, depositária de uma tragédia intransponível: a morte, destino coletivo da humanidade. Se a espera é a admissibilidade da sujeição, paradoxalmente, poderá garantir o que a esperança não tem como obrigação oferecer: satisfação constante, quiçá felicidade. Experimentar a esperança autêntica é suportar e viver a dor da lucidez para revoltar-se, dado o reconhecimento do absurdo que nos é comum, da vida pautada pela consciência da morte. E eis a pergunta que nos é fundamental: que vida vale a pena ser vivida?

Com a pandemia, a falsa esperança espera a emergência da solidariedade espontânea: romantiza-se a doença; declara-se que estamos no mesmo barco. Assim, fechamos os olhos para o modo como a Covid-19 escancara a injustiça social sob a qual assentou-se a normalidade. A possibilidade da morte apenas lembrou que esse é o destino coletivo da humanidade, mas não estamos no mesmo barco, estamos em alto mar: alguns, em iates; outros, à deriva, teimosa e instintivamente, agarram-se ao que podem para flutuar. A esperança autêntica conclama que não voltemos ao que tínhamos como normalidade, pois isso impossibilita o reconhecimento do absurdo e mantém a sujeição: nenhum flagelo é admissível. Haverá esperança?


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