Artigo: Tudo continua como antes?
A crise é um momento de mudança súbita que abala nossas certezas temporárias e nos impõe tomadas de decisões a partir de novas perspectivas. Nesse sentido, a crise gerada na educação advinda da pandemia da covid-19 tem nos provocado inquietações acerca das consequências na vida de 47,8 milhões de estudantes da educação básica e 8,3 milhões da educação superior.
As discussões e as ações a respeito das consequências da pandemia para a educação transcendem a suspensão de aulas ou a forma de modalidade de suas ofertas. Elas nos convidam a pensar e a desenvolver oportunidade de aprendizagens inclusivas e plurais, que possibilitem o direito à educação com equidade e qualidade para os estudantes.
Alcançar caminhos possíveis para essas oportunidades de aprendizagem, como tudo na educação, envolve esforço coletivo para sua efetivação. Requer atuação cooperada tanto entre os grupos que constituem o sistema educativo, quanto destes com áreas diretamente relacionadas à educação, a exemplo da saúde, comunicação, trabalho e renda.
Acreditar que lideranças governamentais, docentes, estudantes, responsáveis, agentes educacionais conseguiremos criar e desenvolver soluções sozinhos conduz ao reducionismo de posturas heroicas, excludentes, autoritárias e pouco efetivas. Precisamos considerar os diferentes lugares de fala e reconhecer a necessidade dos lugares de escuta como indispensáveis para as tomadas de decisão, nos âmbitos locais ou nacionais no contexto da covid-19.
De um lado, temos profissionais e lideranças de secretarias de educação, que buscam a potência das ferramentas digitais de informação e comunicação, bem como de fundamentos da educação on-line, para continuar as ações pedagógicas. De outro, temos profissionais indagando ou criticando o uso das referidas ferramentas frente ao perigo de legitimar a precarização da educação pública, bem como as ações excludentes para com integrantes das comunidades escolares e acadêmicas que não possuem condições econômicas, psíquicas, emocionais e sociais para desenvolver e acompanhar as atividades pedagógicas.
Incluímos, nesse cenário, lideranças governamentais pleiteando o retorno parcial das atividades presenciais, mesmo sem a garantia das condições mínimas de proteção social e segurança sanitária. Juntam-se também ao contexto os interesses mercadológicos de empresas com seus mágicos e caros pacotes pedagógicos prontos para resolver as inquietações dos preocupados apenas com o cumprimento do conteúdo programático previsto para o ano ou semestre letivo, ainda que nem todos tenham acesso.
Diante desses conflitos e de levantamentos indicando as populações negras e indígenas como as mais vulneráveis independentemente da idade, olho para trás e penso o que posso aprender com minhas antecedentes mais velhas. Com aquelas mulheres negras, frutos da diáspora africana, que, com toda adversidade, educaram sua prole nos possibilitando alcançar espaços de poder.
A inquietação me remete a novas leituras de textos e diálogos com outras mulheres negras que trazem a compreensão de mundo a partir de bases africanas e da histórica luta do povo negro. Racismo, autocuidado, desigualdade social e educacional, genocídio, epistemicídio, narrativas negras, espiritualidade, colaboração, coletivos, lutas, educação nos terreiros, racismo ambiental. Essas palavras, imbuídas de valores, crenças, conhecimentos, sentidos e significados, nos conduzem ao reconhecimento da interconectividade e, mais precisamente, da interdependência de tudo. Somos natureza, somos sociedade e nossa existência depende do outro, humano ou não.
A própria etimologia da palavra pandemia reitera a necessidade de reconhecer a interdependência, ainda que cientes das consequências incidirem de modo desigual em países e populações historicamente atingidas pelas mazelas do racismo, do colonialismo e do machismo.
Aprender a lidar com incertezas e com a nossa capacidade de resiliência diante da covid-19, a partir do legado dos nossos antepassados negros, nos possibilita criar caminhos educativos ou, pelo menos, trilhar os já existentes, a partir de outros modos de ser e de conviver que promovam o direito de aprender a todos os estudantes no contexto da pandemia. E, quem sabe assim, nem tudo continue como era antes.
*Rita Silvana Santana dos Santos é doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da UnB, integrante da Irmandade Pretas Candangas e do GT ODS UnB
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