domingo, 3 de maio de 2020

O taumaturgo do ódio e as duchas corona - Bruno Monteiro

O taumaturgo do ódio e as duchas corona 

Por Bruno Monteiro



Primeiro de maio de 2020



A história da humanidade é fantástica. Ela nos revisita a todo instante, independente das nossas vontades. Quando retorna ao presente nos oportuniza promover reflexões e a rever às sombras dos passado que nos alcançam, mesmo estando-nos em movimento.

O fenômeno da taumaturgia é um exemplo e nos revisita. Para quem nunca ouviu falar em taumaturgia. Eis a chance oportuna. Segundo o dicionário on line Priberam, taumaturgia significa a Capacidade para impressionar através da realização de milagres ou prodígio. Um atributo exclusivo do taumaturgo, que segundo este mesmo dicionário, significa “aquele que opera milagres”, ou seja, estamos falando de um milagreiro. No Dicionário Michaelis on line, taumaturgia é definida como o atributo em “operar milagres ou maravilhas mediante atos prodigiosos”. Na Wikipedia, assim como em vários textos históricos a prática da taumaturgia está ligada ao catolicismo e a religiosidade. De acordo com esta enciclopédia, esta palavra significa “a capacidade de um santo ou paranormal de realizar milagres”. Vários cristãos foram considerados taumaturgos, tais como: “São Gregório Taumaturgo, Santo Antônio de Lisboa, São Cosme, São Damião”, entre outros.

O fato curioso e relacionado à minha intencionalidade na tessitura desse texto, refere-se ao caso histórico de que vários Reis, sobretudo, da França e Inglaterra tinham o atributo conferido e reconhecido pela igreja de terem poderes sobrenaturais milagrosos associados à sua condição de realeza. Estes atributos eram utilizados como uma estratégia para conferir prestígio à figura dos reis e príncipes, ao mesmo tempo em que representavam uma espécie de justificativa divina aos seus poderes absolutos. Nesse sentido, a Graça de Deus se manifestava na escolha de um ser mortal, provindo de uma linhagem que também poderia ser divina e que dentre os vários seres humanos era o eleito ou ungido, para lhe representar naquela nação. Na prática, o Rei soberano exercia o papel de governante absoluto e autoridade religiosa pois tinha o direito sagrado para governar os cristãos. Poderes para cura de doenças, pestes e demais dramas vividos pelos súditos terrenos poderiam ser solucionados pelas mãos divinas do Rei que estaria na terra numa condição acima dos outros homens.

Os rituais de taumaturgia, estiveram presentes nos relatos históricos de desde a idade média até o Século XIX e foram objetos de estudos do historiador Francês Marc Bloch que publicou um livro em 1924, acerca do tema. Na Série de TV, Versailles que retrata a construção do Palácio de Versailles durante o reinado do monarca absolutista Luís XIV, no Século XVII. No desenvolvimento da trama o Rei Luís XIV, após uma série de divergências e conflitos com o Vaticano autodeclara-se representante da igreja na França, invoca poderes supremos e passa promover rituais de taumaturgia nas ruas de Paris com o objetivo de se aproximar da população que estava revoltada com a nobreza diante das desigualdades, fome e das péssimas condições de vida da população. Era uma estratégia de enganação da população que por conta do sofrimento promovido pelas desigualdades buscava se organizar politicamente para se contrapor ao autoritarismo da coroa e a reivindicar partes das riquezas da França que garantiam a nobreza uma vida confortável e farta. Ao tocar as pessoas doentes, pobres, desvalidas e esperançosas por alguma cura, o Rei pronunciava a frase: “O Rei te toca, que Deus lhe cure”.

Este relato pode nos conduzir a um tipo de taumaturgia que está nos revisitando nesses dias atuais. Hoje temos uma figura mítica que ocupa o cargo máximo da nação e que segundo seus seguidores é visto como uma espécie de salvador. Um verdadeiro justiceiro apto a livrar o Brasil da corrupção, das ideologias de gênero, do comunismo, do PT, dos esquerdistas, artistas, professores, da mamadeira de piroca, do kit gay e todos que são contra qualquer coisa que ele acredita. Este salvador é visto por vários setores religiosos como um ser ungido dotado de poderes sobrenaturais, do mesmo modo que os reis da antiguidade. Ele atua como um monarca absolutista passando por cima das instituições democráticas, derrubando os direitos dos trabalhadores, fazendo o jogo da Casa Grande e da Elite do Atraso, conforme destaca a brilhante análise de Jessé Souza, no seu livro sensacional publicado em 2017 (A elite do atraso: da escravidão a lava jato). Para Jessé Souza, existe uma elite pós-colonial que persiste no Brasil desde a era colonial. Essa elite burguesa concentra a maior parte das riquezas do país, é extremamente racista e não aceita as ideias de redução das desigualdades sociais e da distribuição de renda.

A elite do atraso associada a uma elite religiosa fundamentalista e cristofascista conferiu ao seu Totem os poderes de um curador, um milagreiro ou um taumaturgo à brasileira. Quando vejo as imagens de dezenas ou centenas de pessoas tentando tocá-lo nas idas e vindas do “Palais du Plateau ” ou nas ruas, revisito a história dos rituais farsantes de taumaturgia do passado. Talvez este movimento tenha ficado no DNA ou no inconsciente coletivo dos súditos do Rei e foram transferidos a nossa geração pós-colonial. O fato intrigante é que em março de 2020, este líder de duplos poderes (religiosos e políticos) retornou de uma viagem aos Estados Unidos num voo que poderia ser chamado de o Voo do Corona (Corona`s Flight), pois, 23 das pessoas que estavam neste voo foram contaminadas com a Covid-19. O Totem ou Grão-Vizir da bestialidade afirma até hoje que não contraiu a doença e desde a sua chegada, ignorando as recomendações sanitárias de seu próprio Ministério da Saúde, vem saindo as ruas para cumprimentar pessoas, lanchar em padarias, liderar movimentos antidemocráticos e a lançar seus perdigotos na população que tenta tocá-lo, tal como num ritual de taumaturgia. Institucionalizando o negacionismo, ignorando a Ciência e as consequências da pandemia desdenha e menospreza o vírus letal que já matou milhares de pessoas ao redor do mundo. Além disso, a omissão de seu desgoverno contribui para o avanço do desmatamento, violências contra comunidades indígenas, quilombolas e demais populações socialmente vulneráveis.


Parece-me que seus seguidores e adoradores querem tocá-lo não em busca da cura para suas angústias, mas sim, alimentarem-se de ódio, preconceito e desumanidade. É um ritual recíproco taumatúrgico do ódio, pois nesse caso, o próprio “Rei” também quer tocar, necessita tocar as pessoas. A intenção não é a cura e sim, a busca em via de mão dupla, pela contaminação do corpo e da alma. Uma retroalimentação de mentes doentias presas no imaginário dos porões da tortura. Torturador absolutista e súditos fiéis se tocam trocando perdigotos numa espécie de transa infernal, uma cópula regada às Duchas Corona, um banho de alegria num mundo de água quente”.

Referências 
Duchas Corona (Jingle de 1976). Disponível em: https://www.letras.mus.br/jingles/duchas-corona-jingle-de-1976/. Acessado em 01/05/2020.

M. BLOCH, Os Reis Taumaturgos, o caráter sobrenatural do poder régio. França e Inglaterra, trad. J. MAINARDI, São Paulo, 2005, p. 16 e 28-29

Dicionário Michaelis. Disponível no site: https://michaelis.uol.com.br/. Acessado em 01/05/2050.

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato, São. Paulo: Editora Leya, 2017. 242p.

Já são 22 os infectados que viajaram com Bolsonaro aos EUA. Disponível no site: https://exame.abril.com.br/brasil/ja-sao-22-os-infectados-que-viajaram-com-bolsonaro-aos-eua/. Acessado em 01/05/2020.

"taumaturgo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/taumaturgo [consultado em 01-05-2020].

"taumaturgia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/taumaturgia [consultado em 01-05-2020].

TAUMATURGIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Taumaturgia&oldid=56193221>. Acesso em: 9 set. 2019.

VERSAILLES (SÉRIE DE TV). In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Versailles_(s%C3%A9rie_de_televis%C3%A3o)&oldid=58153853>. Acesso em: 30 abr. 2020.

Já são 22 os infectados que viajaram com Bolsonaro aos EUA. Disponível no site: https://exame.abril.com.br/brasil/ja-sao-22-os-infectados-que-viajaram-com-bolsonaro-aos-eua/. Acessado em 01/05/2020.

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