segunda-feira, 4 de maio de 2020

Mulheres, coronavírus e cuidado, por Lea Tiriba e Carolina Alves


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Mulheres, coronavírus e cuidado, por Lea Tiriba e Carolina Alves

Na contramão da perversidade do sistema, talvez a resiliência feminina possa sentir e pensar a crise pandêmica como oportunidade para ensinar ao mundo o que hoje ele mais necessita: o cuidado!
Arte Alice Pasquini

Mulheres, coronavírus e cuidado

por Lea Tiriba e Carolina Alves

Neste momento em que o Convid-19 põe a vida em suspenso, questiona as relações entre seres humanos e natureza, isola socialmente e transfigura as relações produtivas, o Portal do Servidor do Governo Federal oferece “dicas” de organização da rotina para quem está trabalhando em casa[1]. Surfando na onda mercadológica, trazendo para o plano privado, o que antes era vivido e praticado publicamente e coletivamente, as dicas afirmam a importância de reservar um tempo diário ao que seria “fundamental para o bem estar pessoal e para o trabalho produtivo”, com prioridades definidas em função das “entregas mais urgentes”. Ultrapassando todos os limites da privacidade individual e familiar, além de propor  a troca do pijama por uma roupa de trabalho, o portal chama a atenção para não nos distrairmos com as redes sociais, o celular e a TV. Indo além, disfarça a intromissão aconselhando “pequenos intervalos para beber água, fazer um alongamento e dar um alô para alguém que você ama”.
Injuriadas com tamanha falta de respeito, pensando nas profissionais de educação, hoje enredadas pelas tarefas domésticas e remotas, perguntamos: quem está de pijama? Quem faz a comida, limpa, lava a roupa e tudo o que se toca, pacotes, vegetais, legumes; passa pano nos pisos e pias, ensina as crianças a se protegerem do virus? No caso daquelas que assumem sozinhas a responsabilidade pela família, quem controla as despesas, a ansiedade, o medo e as incertezas e ainda cuida para não ser contaminada ? Alguém tem duvidas de que o coronavirus sobrecarregou as mulheres, especialmente? De que, em função de tantas demandas, seu bem estar pessoal é posto em terceiro ou quarto plano?
São as mulheres que, na sociedade patriarcal, assumem a função de cuidar das crianças, da casa, das compras, dos enferemos, dos idosos, de tudo que diz respeito ao cuidado. Atividade cotidiana, não remunerada, invisível, mas fundamental à manutenção do sistema produtivo, porque garantem as roupas lavadas, a comida feita, tudo em ordem para que os homens e os filhos saiam de casa para o trabalho, ou para a escola, sem fome e cheirosos.
Vale lembrar que as atividades domésticas, de cuidados e limpeza da casa – ainda mais essenciais nesse momento – são historicamente desempenhadas por mulheres negras das classes populares, mães, tias e avós da maioria das crianças e jovens brasileiros. Trabalho fragilmente regulamentado e mal remunerado: não é à toa que muitas das mulheres, especialmente as mães que sofrem penúrias nesse momento, são empregadas domésticas, diaristas que foram dispensadas do cuidado da casa de terceiros, sem nenhuma garantia de renda, ou direito trabalhista. Com as escolas fechadas, sem água em casa e sem salários, não podem  sequer assegurar a proteção dos filhos contra o vírus letal, nem sua alimentação.
O que dizer então sobre a dimensão dos cuidados, quando saímos da esfera urbana globalizada, para o ambiente rural? Lembrando que a produção agrícola familiar ainda fornece a maior parte dos alimentos não industrializados, as campesinas, além do cuidado com os filhos e a família, são responsáveis também pela produção do que chega à mesa da grande maioria dos brasileiros. Neste momento de crise pandêmica, também essas mulheres enfrentam dificuldades! Momento em que milhares de famílias retornam à miséria, condição personificada naquilo que os cidadãos de classe média e alta, bem instruído, não pode ou não quer imaginar: um quadro de desigualdade social que ameaça a sobrevivência de todos. Já convivíamos com essa realidade, mas agora a pandemia descortinou a miséria, a fome, efeitos mais cruéis do recente “enxugamento” dos programas sociais e serviços básicos de saúde, educação e saneamento.
A barra pesou mesmo para as mulheres que podem contratar empregadas domesticas para manter o lar e o sistema produtivo. Sim, mesmo para estas, porque, na sociedade machista, uma mulher só sai de casa quando é substituída por outra mulher. Agora, na ausência de “Maria”, quando muito, “ajudam”. Ou seja, não se assumem como responsáveis por atividades domésticas que são de todos e todas; que devem ser aprendidas inclusive pelas crianças, na medida das suas possibilidades, é claro, e desde que não as impeça de realizar a sua principal atividade: brincar!
Além de machistas, as dicas são parte de um receituário produtivista, que pensa e sente a vida como se fosse fábrica: o país, as escolas, mesmo as crianças não podem parar, ainda que tudo esteja em suspenso, ainda que não se saiba nada sobre o mundo que encontraremos quando pudermos sair de casa. Obedientes à lógica do capital, que submete a vida ao lucro, elas visam transpor a lógica da fábrica para dentro de casa, indiferentes às diversas dinâmicas familiares, às condições de renda, locais de moradia e tantos outros fatores sócio-demográficos que interferem na existência concreta, dia após dia.
Voltando às mulheres professoras – hoje enredadas em trabalhos domésticos e também em trabalhos remotos, planejando o antes inimaginável, atividades para crianças pequenas frente à tela -,  as dicas ignoram o fato de que o tempo da produção não corresponde ao tempo da educação. Cuidar exige um tempo que não é o do mercado, dos negócios: quem cuida não pode estar voltado só para si mesmo, mas atento e sensível para poder perceber de que o outro necessita.
Para educar e cuidar é necessário um conhecimento daquele que necessita de cuidados, o que exige presença, proximidade, tempo, entrega. Assim, ao sugerir que organizemos o dia a dia em função das “entregas mais urgentes”, as dicas evidenciam o fato de que o sistema produtivo não está voltado para o bem estar das pessoas. Revelam também uma articulação estreita entre capitalismo e patriarcalismo; e nos convidam a recusar relações de gênero que historicamente têm colocado as mulheres em lugares sociais de subordinação, ainda mais opressivos se considerarmos às mulheres das classes populares, mães, tias e avós da maioria das crianças brasileiras.
Na contramão da perversidade do sistema, talvez a resiliência feminina possa sentir e pensar a crise pandêmica como oportunidade para ensinar ao mundo o que hoje ele mais necessita: o cuidado! No entanto, sem que este continue significando uma tarefa exclusivamente feminina, ou sendo encarado como um trabalho menos importante e desvalorizado socioeconomicamente. Aprender a lição de que as relações de cuidado são essenciais para nossa sobrevivência em comunidade implica desconstruir a ideia do cuidado como algo restrito ao “universo feminino” e trazê-lo como parte integrante das perspectivas educativo-pedagógicas, tanto para meninos, quanto para meninas. Igualdade de gênero, amizade, solidariedade: isso não se aprende nas telas!

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