Para presidente da OAB, “há risco de golpe”
Fonte: Agência Pública
Resumo:
Em entrevista à Pública, Felipe Santa Cruz, afirma que dificilmente Bolsonaro concluirá mandato e que posse de Mourão é saída institucional
Por Vasconcelo Quadros
Vanguardista na luta contra ditaduras e uma das autoras do pedido de impeachment que cassou o mandato de Fernando Collor em 1992, já na redemocratização, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) está preocupada com a escalada da violência política e com os sinais de golpe emanados do Palácio do Planalto para grupos radicais de direita que gritam pelo fechamento de instituições. “Há sim o risco de golpe. Tem forças nas ruas pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo. Não se vê isso em nenhum outro lugar do mundo”, alerta o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz nesta entrevista à Agência Pública.
O presidente da OAB diz que o presidente está se cercando cada vez mais de grupos que buscam o poder pela força e, coerente com sua trajetória marcada pela pregação do autoritarismo e de baixa convivência com a democracia, aposta no conflito como estratégia. O presidente ainda não deu a guinada golpista, diz Santa Cruz, porque não tem força. “Não estranharia se esses episódios, esse caminho de ódio e de fratura na sociedade brasileira, resultarem numa escalada de violência e mortes”, alerta.
Segundo ele, em meio a uma pandemia que exige esforço das instituições para reduzir mortes pelo coronavírus, a OAB não vê clima para abrir agora um processo de impeachment contra o presidente. Mas diz que as investigações que cercam o presidente prosseguem em ritmo normal e que o Congresso será o ator principal no cenário que surgirá depois da fase aguda da crise na saúde. E alerta: “Bolsonaro vai numa marcha de insensatez e, embora a população brasileira não consiga neste momento expressar seu repúdio nas ruas, nesse ritmo dificilmente concluirá o seu mandato”, afirma Santa Cruz.
Para Santa Cruz, filho do militante político Fernando Santa Cruz, desaparecido na ditadura, as Forças Armadas têm compromisso com a Constituição e, portanto, não apoiariam uma guinada golpista. Caso o Congresso afaste o presidente mais adiante, Santa Cruz diz que o presidente constitucional é o general Hamilton Mourão, “o vice-presidente eleito”.
Que avaliação o senhor faz da situação do presidente Bolsonaro? Os inquéritos, pedidos de impeachment e de CPIs significam que o cerco está se fechando em torno do mandato dele?
Eu não diria que o cerco não está se fechando. O que está efetivamente acontecendo é a consolidação, numa parcela muito grande da população brasileira, da agenda do presidente da República, que já tinha uma conduta polêmica, fora do decoro tradicional do cargo e diferente ao histórico da presidência, de governar para uma minoria. Por incrível que pareça, diante da pandemia, para perplexidade do mundo, ele se transformou em líder internacional do atraso e na maior liderança mundial anticiência, anti progresso e antimodernidade. Essa imagem sim se consolidou nele de forma clara, bem contrastada e sem retorno.
Qual o significado do encontro do presidente com o ex-major Sebastião Curió, militar da reserva ligado a repressão política durante o período mais grave da ditadura?
Pela primeira vez na história republicana, no dia do trabalho o presidente não falou aos trabalhadores, não mandou uma única mensagem, mas continua fazendo apologia à memória dos torturadores e recebeu os torturadores no próprio Palácio do Planalto. Isso demonstra mais claramente qual é a linha política do presidente da República e seu viés autoritário, que hoje coloca a democracia em xeque. Há uma preocupação muito grande no mundo com o destino da nossa democracia em função da conduta do presidente e desses grupos mais radicais que o apoiam a partir de uma lógica autoritária.
O país caminha para o recrudescimento político?
Bolsonaro vai numa marcha de insensatez e, embora a população brasileira não consiga neste momento expressar seu repúdio ao presidente nas ruas, nesse ritmo dificilmente concluirá o seu mandato. É muito ruim que obrigue a população a esse distanciamento. Ele, que foi legitimamente eleito, não está mais fazendo uma política de direita. Está fazendo uma política pró-autoritarismo, com cooptação das instituições nas mais variadas formas, como se vê com a Polícia Federal e com o Judiciário. O presidente hoje não merece o crédito de democrata. Se esse enfrentamento e essa radicalização continuarem, repito, dificilmente o presidente vai concluir o mandato dele. Se continuar nessa marcha ou a democracia se muda do Brasil ou não tem como o Bolsonaro terminar o mandato.
O que o senhor achou das acusações do ex-ministro Sergio Moro no inquérito que apura interferência do presidente na PF?
Achei o depoimento do Moro forte, demonstra isso que estou falando, que é a dificuldade do presidente em compreender os limites do público e o privado. Talvez o episódio mais gritante tenha sido a indicação de um filho [o deputado Eduardo Bolsonaro], com formação absolutamente medíocre, para embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Ele não tem a clareza da Constituição e das leis, não diferencia o público do privado, como demonstram as práticas feitas nos gabinetes da família. Isso torna o cenário muito preocupante.
O nível da crise indica que já é hora de discutir a possibilidade de impeachment?
Acho que ainda não, por conta da pandemia. A OAB vem acompanhando a crise do coronavírus, e atuando em mais de mil municípios do país. Tem que ficar em pânico é com essa falta de coordenação, de governança e da incapacidade do presidente para gerir os trabalhos para controle da pandemia. Ele está com a agenda completamente voltada para as eleições de 2022. Defendo que as instituições continuem funcionando, o Supremo continue tocando o inquérito (o da interferência na PF), a própria OAB através de sua comissão de Constituição siga discutindo se há crime de responsabilidade e crime comum nos fatos apontados pelo ministro Moro, mas entendo que o foco total agora é o no coronavírus.
Mas é o presidente quem gera as tensões na política. Num certo paradoxo ele não está provocando o impeachment?
Sim. Ele é o maior elemento de crise hoje no Brasil, mais até do que a pandemia, por incrível que isso possa parecer. Ele é um elemento de distúrbio nas forças políticas. Chega a causar perplexidade por se comportar tão fora do que é a esfera de responsabilidade da presidência da República. Certamente é o pior presidente que o Brasil já teve. Foi um parlamentar absolutamente medíocre durante 28 anos e tão fora do papel político que acabou levando a sociedade a optar pelo momento grave como o que vivemos, embora eu entenda o processo histórico que gerou isso. Ficou difícil agora tratar essa questão com soluções institucionais e serenidade que não causem mais esgarçamento na sociedade brasileira. O desafio é como, dentro da lei, da Constituição e das instituições funcionando, colocar limites nas práticas do presidente – como a OAB e o Supremo vem tentando fazer – e a partir disso fazer com que ele dê um passo atrás na sua marcha autoritária.
Apesar dos riscos de contágio do vírus nas aglomerações, a extrema direita está nas ruas pedindo ditadura e um novo AI-5 em atos que têm resultado em violência como se viu nos casos do protesto dos profissionais de saúde e nas agressões físicas a jornalistas trabalhando. Quais os riscos de conflito?
Claro que pode ter conflito. A tensão nas ruas está aumentando. Já temos vários episódios de violência contra pessoas que pensam diferente, contra jornalistas. Na medida que isso vai sendo manipulado com a força simbólica da presidência da República, a paranoia do inimigo, do comunismo, coisas absolutamente fora do contexto, cria uma minoria cada vez mais radicalizada, cada vez mais violenta. Na medida em que esse ódio vai sendo manipulado torna-se cada vez mais preocupante. Não estranharia se esses episódios, esse caminho de ódio e de fratura na sociedade brasileira, resultarem numa escalada de violência e mortes.
O que representam esses grupos que pedem fechamento do Supremo e do Congresso?
Tem de tudo ali. Desde pessoas muito frustradas, com baixíssima formação, a pessoas que têm verdadeiramente ligação com a criminalidade, os milicianos e os que estão envolvidos em estelionato. O presidente tem uma base que flerta com a ilegalidade. Ele namora um estamento que vive à margem da lei e tem ódio de tudo. Como é clássico na história, esse ódio acaba sendo manipulado pelos populistas.
Qual o papel das Forças Armadas nesse contexto?
Fui defensor da presença de generais nas atividades de governo. É normal e acontece em qualquer país. Têm um papel forte e devem trabalhar dentro da Constituição como instituição de Estado. Me parece o presidente, mais do que as Forças armadas, tenta confundir esses sinais. Bolsonaro tenta confundir a imagem das Forças Armadas com a sua imagem porque elas têm o apoio de 68% dos brasileiros, enquanto o presidente tem pouco mais de 27%.
Especialistas afirmam que falta uma manifestação mais contundente das Forças Armadas para que não se confunda o compromisso constitucional com apoio ao presidente. É isso?
Sinceramente acho que elas não devem ter posição contundente, não. Estranho é quando fazem uma declaração de que vão observar a Constituição. Não se vê isso nos Estados Unidos. A manipulação do presidente poderia ser enfrentada pelas lideranças das Forças Armadas, de preferência os da reserva. Uma posição de não arbítrio, eu acharia absolutamente estranho. Seria uma redundância. Nós não deveríamos discutir e nem conviver com esse tema. Ninguém fala sobre o papel das Forças Armadas na Europa ou num país anglo-saxão.
O que preocupa a OAB nesse momento?
A democracia, que está umbilicalmente ligada à Ordem desde a redemocratização, depois da luta contra a ditadura. Nossa preocupação é com os direitos civis que estão sob ataque nessa situação surreal em que vivemos. É um quadro gravíssimo porque há o acúmulo de várias tempestades ao mesmo tempo. Por essa razão é que digo que a democracia brasileira está em xeque.
Como se sai dessa crise?
Vivemos uma década perdida, a pior década da história republicana. O país, que já vinha com dificuldades, terá anos de muita pobreza. Nós sabemos que frustração, ódio e miséria trazem situações de instabilidade. A OAB será a guardiã da Constituição junto ao Supremo. O grande espaço que a OAB vai ocupar será o de construir permanentemente a defesa da liberdade de imprensa, da liberdade de expressão. A defesa das liberdades é um papel institucional que a Ordem nunca pode declinar.
O presidente aposta no conflito?
O presidente Bolsonaro aposta num conflito radicalizado. Mas ele tem sido absolutamente coerente com sua trajetória. Pode acusar o Jair Bolsonaro de qualquer coisa, menos de incoerência. Até aí não há novidade em sua trajetória. A novidade é no que o Brasil, onde um presidente eleito normalmente tenta ser o presidente da maioria, Bolsonaro busca cada vez mais ter um grupo radicalizado ao seu lado que coloque sua agenda no campo da força. Quando ele flerta com a ideia das Forças Armadas ao seu lado, está cada vez mais dizendo que o jogo da legitimidade democrática não basta. Ele quer ficar namorando eternamente a ideia da força, como faz o grupo radicalizado, fora da lei, nas redes sociais da internet, difamando e caluniando para intimidar.
Os grupos de extrema direita que apoiam o presidente podem se transformar em organizações mais perigosas?
Vejo com absoluta preocupação, principalmente pela ligação histórica da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro, as mais perigosas do Brasil, e por essa conduta dele de cooptação dos baixos oficialatos tanto das polícias militares quanto do exército.
Há sinais disso?
Não vejo ainda sinais de organizações paramilitares, mas vejo políticas que podem gerar isso.
Caso Bolsonaro seja afastado, o vice-presidente Hamilton Mourão assumiria. Como o senhor vê a hipótese de um general no poder?
Se há um caminho constitucional, não vejo porque não. Até porque o general Mourão é um homem que teve uma carreira de sucesso no Exército. Posso não comungar com ele suas ideias de mundo, mas é uma pessoa que, absolutamente, tem honorabilidade e nunca se ouviu dele nenhum tipo de demérito como general. É o vice-presidente eleito e não vejo porque excluir o nome dele.
Qual é a previsão de tempo para se resolver a crise política?
O mundo está em suspense. Só vamos poder fazer essa avaliação quando as coisas voltarem minimamente ao funcionamento, na medida em que o Congresso, o Supremo e a ordem voltarem a se reunir presencialmente. Brasília está vazia e não há nem malha aérea funcionando normalmente. Nesse sentido a crise política é até acessória do quadro principal, que é a Covid-19. Tomara que a fase aguda passe logo. Só então poderemos fazer uma análise mais clara.
O senhor vê riscos de golpe?
O Brasil corre sim porque há forças nas ruas pedindo o fechamento do Congresso. Não se vê isso em nenhum outro lugar do mundo. Cabe a gente evitar pela democracia, que é a força da maioria. Mas volto a dizer, o quadro de desesperança, frustração, empobrecimento e a clara intenção do presidente de, tendo forças, dar o golpe de várias formas, torna essa hipótese muito alarmante.
O que o impede?
Não faz porque não tem força. Repito que não há aí incoerência nele. A vanguarda do atraso está no poder. O grande ator dos acontecimentos nos próximos tempos no Brasil será o Congresso Nacional.
O que a OAB tem feito para se contrapor às ações do governo na área ambiental?
A OAB entrou com uma ação no Supremo contra o decreto que retira proteção ambiental na Mata Atlântica e tem uma preocupação muito grande com o que vem acontecendo na Amazônia. O presidente continua flexibilizando as áreas de conservação ambiental, o que quer dizer que a agenda do atraso continua a todo vapor. Há um drama que preocupa o mundo: os 23% a mais de exploração de garimpos na Amazônia e essa representação da ilegalidade. O presidente está ocupando órgãos como a Funai e Ibama com pessoas a ele ideologicamente alinhadas para desmontar esses órgãos e para que não funcionem. O atraso está no poder, vivendo seu grande momento histórico no Brasil.
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