terça-feira, 8 de janeiro de 2019

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Trouxeste a chave?

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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Trouxeste a chave?

por Lucilene Machado
Janeiro 7, 2019


O amor já não é semeado no vento e, como você profetizou, chegou o tempo em que perderíamos os afetos. Não adianta morrer. Chegou o tempo em que viver é uma ordem


Encontramos um Drummond na parede úmida da casa. A princípio pensamos ser um homem qualquer, desses que aparecem pichados nas paredes dos prédios, mas quando minha amiga contornou a cabeça calva com óculos de grau, a espinha cuidadosamente empinada e as pernas finas do Carlos gauche, a interpretação foi unânime: é o poeta. Veio do lugar das coisas acontecidas e deve ter descido pela escada de algum verso retumbante, até ficou com cara alegre.

Meu primeiro desejo foi perguntar: trouxeste a chave? Mas me pareceu atrevimento. Então falei: – Salve Carlos, sou a que te ressuscitou na parede da memória.
Ele respondeu com um silêncio solene. Mas eu vi em seu rosto côncavo que ele queria falar, estava refletido no ar de sua escutação. Desconfiei que quisesse dizer: “penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos”. Fui logo me defendendo: – o reino das palavras que te apresentaram está gasto, não sei se isso o decepciona, mas o eterno não vale mais. As árvores já não nascem, precisam ser plantadas. As mulheres têm parto sem dor, já não se ouve o grito da natureza cruzando o corredor escuro para encontrar a luz, tudo é rápido e efêmero. Nada nasce lentamente, como você descreveu, nem o amor. O amor ganhou novos contornos e a poesia teve que  se armar, até os dentes, para defender os seus princípios líricos amorosos. Perdemos, Carlos, perdemos. Você e eu. O amor é um pênis gigante dentro da boca. Já não cabem as palavras. Só o gosto ácido da saliva e a dor seca da mandíbula a modular narrativas.
O amor já não é semeado no vento e, como você profetizou, chegou o tempo em que perderíamos os afetos. Não adianta morrer. Chegou o tempo em que viver é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação, sem poesia. Confesso – só para você – que sinto pudor em existir, me vejo deslocada no tempo, sentindo falta de coisas que já não existem, guardando palavras detrás dos dentes, porque falar não importa. Importa fazer. Meu cansaço é o cansaço deste tempo frívolo, das palavras vazias escorregando pela língua. Pagam-se preço alto pela estética e já não se perguntam no bonde “meu Deus, para que tantas pernas?” Perdemos o gosto real das coisas. O mundo ficou calhorda. Todos buscando algo que não sabem. Montando máquinas enfurecidas. Fazendo orações em benefício das desgraças, usando armas como símbolo de paz, explodindo e implodindo corpos como se fosse um grande orgasmo.
Morremos em todas as batalhas, poeta. Vários colegas se calaram. Ficaram mudos dentro de si. Profissionais analistas da alma tentam resolver a questão, mas quê! É o tempo nervoso da imbecilidade e glorificação da ignorância. Torcem as palavras, dissociando-as de seus verdadeiros significados e hipócritas são conclamados aos postos de intelectuais. O desejo da população em permanecer confortavelmente em estado de não-reflexão é assombroso, o que tem aberto espaço a um grande surto de ódio.
Parece que não temos mais alternativas. A frustração se implantou dentro de todos com suas raízes secas, apregoando que devemos nos acostumar com a solidão. O homem se tornou um bicho acuado, de gestos pequenos, palavras medidas. Já não temos confissões. Por outro lado, o silêncio nos rói, nos mata lentamente, sem pactos e sem molduras. Um silêncio desumano que vai fatiando a veracidade das coisas, por mais racionais que sejam. Ficamos desprovidos de fé e esperança. A verdade é um fio de cabelo atando fragilmente as palavras. Já não se pode crer nela.
A última verdade que constatei foi sua presença no corredor do banheiro. E é estranho que estejas feliz, nessa sina de fantasma, a me ouvir com uma paciência feminina. Continuas o Drummond de sempre. Esse encontro foi o único episódio que fez oscilar meu estado de espírito. Há momentos em que as coisas são intensamente o que são que dispensam qualificativos. Só digo que ri alto, tanto que os vizinhos querem saber. Estou pensando em cobrir de tinta o seu corpo. Uma forma de proteger nossos diálogos, mas saberei que você está ali. Guardarei na retina cada traço do seu contorno, cada razão e cada loucura. O mundo está medíocre, mas é a poesia ainda pode ser o nosso refúgio contra o tempo que transforma saber em devaneio e cria profundos sulcos nessa geografia árida, desdizendo o nosso reino de palavras.
Seja sempre bem vindo, Carlos.

*Lucilene Machado, doutora em Teoria Literária e professora na UFMS

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