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neoliberalismo é a nova face do fascismo - A linguagem da educação neoliberal
25/12/2018, Henry Giroux – Mitja Sardoč, Counterpunch
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga
“Vou contar um segredo para vocês:
administrar o governo federal é como administrar a sua casa.”Henrique Meirelles
(“Um Banqueiro em Campanha”, Isto É Dinheiro, 12/2/2016)[NTs].
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administrar o governo federal é como administrar a sua casa.”Henrique Meirelles
(“Um Banqueiro em Campanha”, Isto É Dinheiro, 12/2/2016)[NTs].
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“O neoliberalismo autodefiniu-se como uma modalidade de ‘senso comum’ e funciona como modalidade de pedagogia ‘pública’ que produz um modelo pelo qual os neoliberais tentam estruturar não só os mercados, mas toda a vida social. Nesse sentido, funcionou e continua a funcionar, e não só pela educação pública e universitária, para produzir e distribuir valores ‘de mercado’, identidades ‘de mercado’ e modos de associação e agenciamento ‘de mercado’, mas, também mediante aparelhos e plataformas culturais mais amplas, para privatizar, desregular, economicizar e submeter todas as instituições e relações que regem a vida diária, aos interesses da privatização, da eficiência, da desregulação e da conversão de tudo e todos ao estado de mercadoria.” [...]
“Sob modos neoliberais de governança, em seja qual for a instituição, todas as relações sociais são reduzidas a um ato de comércio” [...] (Henry Giroux, adiante).
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Aqui, Henry Giroux é entrevistado por Mitja Sardoč, professor do Instituto de Pesquisas de Educação, na Faculdade de Ciências Sociais, na Universidade de Ljubljana, Eslovênia.
Mitja Sardoč: Por
várias décadas, o neoliberalismo tem aparecido na linha de frente de
discussões, não só de economia e finanças, mas infiltrou-se também no
nosso vocabulário de inúmeras outras áreas, como estudos da governança,
criminologia, atenção à saúde, jurisprudência, educação, etc. O que
disparou o uso e a aplicação dessa ideologia economicista, associada à
métrica de ‘resultados’, efetividade e eficiência?
Henry Giroux: O
neoliberalismo tornou-se a ideologia dominante dos nossos dias e
autoestabeleceu-se como traço central da vida política. Não se
autodefine só como sistema político e econômico, cujo objetivo é
consolidar o poder em mãos da elite empresarial e financeira; também
disputa espaço na guerra de ideias.
Nesse campo, o neoliberalismo
autodefiniu-se como uma modalidade de ‘senso comum’ e funciona como
modalidade de pedagogia ‘pública’ que produz um modelo pelo qual os
neoliberais tentam estruturar não só os mercados, mas toda a vida
social. Nesse sentido, funcionou e continua a funcionar, não só pela
educação pública e universitária, para produzir e distribuir valores ‘de
mercado’, identidades ‘de mercado’ e modos de associação e agenciamento
‘de mercado’, mas, também em aparelhos e plataformas culturais mais
amplas, para privatizar, desregular, economicizar e submeter todas as
instituições e relações que regem a vida diária, aos interesses da
privatização, da eficiência, da desregulação e da conversão de tudo e
todos ao estado de mercadoria.
Desde os anos 1970s, com mais e mais
instituições regentes da sociedade sendo invadidas pela ideologia
neoliberal, a respectiva noção de senso comum – o mais brutal
individualismo, competição feroz, ataque violento e agressivo contra o
estado do bem-estar, evisceração da propriedade pública, e o ataque
neoliberal contra todas as formas de socialidade que não promovam o
mercado e a mercadoria – converteu-se no senso comum não contestado das
sociedades capitalistas.
O que muitos na esquerda estão deixando
passar sem ver é que o neoliberalismo tem a ver com mais do que
estruturas econômicas; que é também uma poderosa força pedagógica –
especialmente em tempos de mídias ditas ‘sociais’ –, que trabalha a
favor da dominação de pleno espectro em todos os níveis da vida social
dos cidadãos. Seu alcance cobre não só a educação, mas também um
conjunto vastíssimo de plataformas digitais e toda a esfera mais ampla
da cultura popular. Sob modos neoliberais de governança, seja qual for a
instituição, todas as relações sociais são reduzidas a um ato de
comércio.
A promoção neoliberal da efetividade e
da eficiência empresta credibilidade à autoproclamada predisposição que
teriam os neoliberais para dar à educação o lugar central da política, e
ao sucesso desse projeto. Também serve como ‘aviso’ aos progressistas.
Pierre Bourdieu insiste em que a esquerda subestimou as dimensões
simbólicas e pedagógicas da luta e não forjou armas adequadas para
combater os neoliberais nesse duplo front.
Mitja Sardoč: Segundo
defensores do neoliberalismo, a educação representaria um dos
principais indicadores de futuros crescimento econômico e bem-estar
individual. Como – e por quê – a educação ascendeu ao posto de um dos
elementos centrais da ‘revolução neoliberal’?
Henry Giroux: Defensores do neoliberalismo sempre reconheceram que a educação é locus de
luta, de apostas altíssimas, em torno de como são educados os jovens,
quem deve receber educação, e que visão de presente e futuro deve ser
mais valorizada, privilegiada e reforçada. Nos anos 1960s, a educação
superior passou por período revolucionário nos EUA e em muitos outros
países, com estudantes buscando redefinir a educação como item da esfera
pública democrática e, ao mesmo tempo abri-la para vários grupos que
até ali haviam sido excluídos. Os conservadores assustaram-se com essa
mudança e fizeram tudo que podiam para impedir que prosperasse. Prova
disso aparece bem clara na produção do Powell Memo publicado em 1971 e, adiante, do relatório, praticamente um livro, da Comissão Trilateral [ing. The Trilateral Commission], intitulado The Crisis of Democracy, publicado em 1975.
A partir dos anos 1960s, conservadores, especialmente a direita
neoliberal, fez guerra total à educação, para esterilizá-la, tirar dela
seu papel potencial como uma das esferas públicas democráticas. Ao mesmo
tempo, buscaram agressivamente reestruturar seus modos de governança;
reduzir o poder dos estudos superiores nas chamadas Ciências Humanas;
privilegiar saberes que fossem instrumentais para o mercado; definir os
alunos principalmente como clientes e consumidores; e reduzir a função
da educação superior a, praticamente, garantir treinamento aos jovens
para se integrarem a força de trabalho global. No centro do investimento
neoliberal em educação está um desejo de minar o compromisso da
universidade com a verdade, com o pensamento crítico, e sua obrigação de
defender a justiça e assumir a responsabilidade pela defesa dos
interesses dos mais jovens que entram num mundo de desigualdades
massiva, exclusão e violência no país onde vivem e em todo mundo. A
educação superior talvez seja uma das poucas instituições que restam nas
sociedades neoliberais, que ainda oferecem espaço mais ou menos
protegido para questionar, contestar e pensar a contrapelo. Os
neoliberais consideram esse espaço perigoso, e têm feito todo o possível
para eliminar a educação superior como espaço no qual os jovens adultos
possam realizar-se como cidadãos críticos, as escolas e faculdades
possam participar na estrutura do governo, e a educação possa
autodefinir-se como direito, não como privilégio.
Mitja Sardoč: Quase
por definição, reformas e outras iniciativas que visem a melhorar a
prática educacional têm sido mecanismos chaves para injetar na educação a
agenda neoliberal de efetividade e eficiência. Que aspecto do
neoliberalismo e de sua agenda educacional você acha mais problemático?
Por quê?
Henry Giroux: Cada
vez mais alinhada com forças do mercado, a educação superior hoje está
dedicada a ensinar princípios negociais e valores empresariais, da
iniciativa privada, e administradores de universidades são gerentões
bem-sucedidos ou burocratas, numa cultura neoliberal de auditagem [ing. audit culture[1]].
Muitos colegas e universidades foram McDonaldizadas, com o conhecimento
visto cada vez mais como mercadoria, o que resulta em currículos que se
assemelham a menus de fast-food.
Além disso, as faculdades são sujeitas
cada vez mais a um modelo Wal-Mart de relações de trabalho, concebidas
para, como diz Noam Chomsky, “reduzir os custos do trabalho e aumentar o
servilismo no trabalho”. Na era da precariedade e da flexibilidade, a
maioria dos professores das faculdades foram reduzidos a empregos de
tempo parcial, salários achatados, controle nenhum sobre as condições de
trabalho, benefícios reduzidos ou cortados, e medo de discutir questões
sociais críticas na sala de aula, por medo de perder o emprego.
O medo de perder o emprego pode ser a
questão central na supressão da livre manifestação do pensamento e da
autonomia acadêmica nas academias. Mais que isso, muitos desses
professores das faculdades mal conseguem chegar ao fim do mês, efeito
dos salários achatados, e muitos já comem em restaurantes públicos, para
desempregados e subempregados. Se os professores são tratados como
trabalhadores braçais e prestadores de serviços, os alunos não estão
muito melhor, relegados agora ao status degradado de consumidor e
cliente na maioria dos casos sem direito algum.
Pior de tudo, são não apenas sufocados
com os valores da competição, da privatização, supostos valores ‘do
mercado’ típicos do neoliberalismo, mas, também são castigados por
aqueles mesmos valores, sob a forma de taxas exorbitantes para obter
orientação, dívidas astronômicas com bancos e outras instituições
financeiras, e em muitos casos, sem qualquer chance de obter emprego
decente.
Como projeto e como movimento, o
neoliberalismo mina a capacidade de educadores e outros ligados à
educação, para criar as condições que garantam aos alunos real
possibilidade de obter o conhecimento e a coragem civil necessários para
vencer a desolação, o pessimismo e o cinismo, e alcançar esperanças
realistas viáveis.
Como ideologia, o neoliberalismo opõe-se
diretamente a qualquer noção prestável de democracia, que os
neoliberais veem como inimigo figadal do ‘mercado’. De fato, nenhuma
democracia será jamais prestável, se os cidadãos não são autônomos, se
não têm critérios pessoais de análise e avaliação, se não têm
curiosidade, se são incapazes de concentrar-se e produzir pensamento
independente, que não seja repetição irrefletida – qualidades que são
indispensáveis para estudantes que aspirem a avaliar, julgar e escolher o
tipo de participação que desejam ter no mundo, e de formatar decisões
que afetam a vida diária, as reformas em geral e as políticas de estado.
Mitja Sardoč: Por
que esses processos de ‘avaliação’ em grande escala, que só consideram
dados quantitativos em geral, são parte tão central da ‘caixa de
ferramentas’ neoliberal para pesquisas sobre educação?
Henry Giroux: São
as ferramentas da contabilidade de bancos, nada têm a ver com visões
mais amplas do mundo ou com buscar conhecer e avaliar o que realmente
faz diferença qualitativa, na avaliação de uma formação universitária.
Um descabida confiança acrítica na métrica e na mensuração passou a ser
ferramenta para apagar todas as questões da responsabilidade, moralidade
e justiça, da linguagem e das políticas para a educação.
Para mim, a caixa de ferramentas
neoliberais que se vê em operação é parte do discurso do analfabetismo
civil que cresce exponencialmente na pesquisa em nível acadêmica, uma
espécie de investimento pervertido em números e métrica, que mata a
imaginação e ataca todos os pontos onde possa haver crítica, dedicação,
atenção ao próximo e coragem para correr riscos. O culto da
mensurabilidade a serviço da cultura da auditagem tornou-se a nova cara
de uma cultura positivista, uma espécie de panóptico empiricista que converte ideias em números, e o impulso criativo, em cinzas.
Avaliações em larga escala e dados quantitativos são o mecanismo central no qual tudo é absorvido na cultura do business.
A distinção entre informação e
conhecimento tornou-se irrelevante nesse modelo, e qualquer coisa que
não se deixe reduzir a números é tratada com desdém. Nesse novo
panóptico da auditagem, o único conhecimento prestigiado é o que possa
ser mensurado. O que some aqui, claro, é que essa utilidade mensurável é
uma maldição, como princípio universal, porque ignora todos os tipos de
conhecimentos baseados no pressuposto de que os indivíduos precisam
saber mais do que como as máquinas funcionam ou qual seja a utilidade
prática de qualquer saber.
Essa linguagem é incapaz de responder à
pergunta sobre qual é a responsabilidade da universidade e dos
educadores em tempos de tirania, quando o ser humano vê-se diante do
horror indizível, do que não consegue dizer em palavras – como no atual
ataque aos imigrantes, aos muçulmanos e a outros seres humanos
considerados descartáveis. É uma linguagem que ao mesmo tempo tem medo e
não tem qualquer desejo de imaginar que mundos alternativos inspirados
pela busca por igualdade e justiça seriam possíveis em tempos já
cercados por forças cada vez mais obscuras do autoritarismo.
Mitja Sardoč: É
verdade que a análise da agenda neoliberal para a educação é bem
documentada, mas a análise da linguagem da educação neoliberal ainda
vive distante do interesse das grandes escolas e seus pesquisadores. De
modo especial, a disseminação do vocabulário neoliberal, que muito fala
de igualdade de oportunidades, de justiça, bem-estar etc. não tem sido
estudada com a atenção necessária. Que fatores contribuíram para essa
mudança de ênfase?
Henry Giroux: O
neoliberalismo potencializou o modo como a linguagem é usada tanto na
educação quanto na sociedade em geral. O neoliberalismo obra para se
apropriar dos discursos associados à democracia liberal que já foram
normalizados, para limitar seus significados e usá-los para significar o
oposto do que eles significaram tradicionalmente, especialmente com
relação aos direitos humanos, justiça, julgamento informado,
ação-militância crítica e democracia em si. Está em curso uma guerra,
não só em torno das estruturas econômicas, mas também se disputam a
memória, as palavras, os significados e a própria vida política.
O neoliberalismo toma palavras como
liberdade e ‘reduz’ o significado a liberdade para consumir, cospe ódio e
celebra noções de autointeresse e o mais pervertido individualismo,
como se isso fosse ‘senso comum’. “Igualdade de oportunidades” significa
mergulhar na competição mais feroz, uma guerra de todos contra todos,
contra qualquer ética ou moralidade, e um modo de comportamento que
cultua a sobrevivência do mais forte.
O vocabulário do neoliberalismo opera a
serviço da violência, dado que reduz a capacidade de realização humana
em sentido coletivo, diminui, no sentido de reduz qualquer compreensão
mais ampla da liberdade como fundamental para expandir a capacidade
humana de atuar, e diminui a imaginação ética, porque a reduz ao
interesse do mercado e da acumulação de capital. Palavras, memória,
linguagem e significações são bombardeadas, detonadas pelos ‘pensadores’
e ativistas do neoliberalismo.
Sem dúvida, nem a mídia-empresa nem os
progressistas deram suficiente atenção à violência com que o
neoliberalismo coloniza a linguagem, porque nenhum desses agentes deram
suficiente atenção à crise do neoliberalismo, não só como crise
econômica, mas também como crise de ideias, crise do pensamento.
A educação, no paradigma neoliberal
deixou de ser vista como força central da política e ponto de
intersecção de linguagem, poder e política. Mais que isso: em tempos em
que a cultura civil está sendo erradicada, as esferas públicas esvaem-se
e noções de cidadania partilhada parecem obsoletas, palavras que dizem a
verdade, revelam injustiças e oferecem análise crítica bem informada
também já começam a desaparecer. Nesse quadro, é cada vez mais difícil
atacar criticamente o que o liberalismo dá à colonização da linguagem.
Nos
EUA, os prodigiosos tuítos de Trump significam não só um tempo em que
governos também já se engajaram na patologia dos boatos e mentiras
infindáveis; aqueles tuítos também operam para reforçar uma pedagogia do
infantilismo concebida para animar ‘as bases’ numa espécie de choque,
ao mesmo tempo em que reforçam uma cultura de guerra, medo, divisionismo
e ganância que desarma qualquer crítico.
Mitja Sardoč: Você
escreveu extensamente sobre a visão exclusivamente instrumental que o
neoliberalismo tem da educação, a compreensão reducionista da eficácia e
a imagem distorcida que os neoliberais tem do que seja igualdade justa.
De que modo uma pedagogia radical pode combater contra o neoliberalismo
e sua agenda educacional?
Henry Giroux: Primeiro,
a educação universitária precisa conseguir reafirmar a própria missão
como bem público, para exigir o direito para si os próprios impulsos
igualitaristas e democráticos. Educadores precisam iniciar e expandir um
diálogo nacional no qual a formação de especialistas nas universidades
possa ser defendida como uma esfera pública democrática e a sala de
aulas como locus para investigação, diálogo e pensamento crítico
deliberativo, colégio que reivindica para si a imaginação radical e um
sentido de coragem cívica.
Ao mesmo tempo, o discurso no qual se
defina a educação universitária como esfera pública democrática pode
servir como plataforma para um compromisso mais expressivo com
desenvolver um movimento social em defesa do patrimônio público; e
contra o neoliberalismo definido como ameaça contra a democracia.
Significa também repensar o modo como a
educação pode ser financiada como patrimônio público. Esse repensar deve
significar combater por políticas que, simultaneamente, ponham fim aos
cortes de recursos públicos para a educação, e realocar fundos hoje
empenhados na máquina militar de matar e encarcerar, para usá-los no
apoio à educação em todos os níveis da sociedade.
Aqui se trata de a educação
universitária não abandonar o compromisso com a democracia e reconhecer
que o neoliberalismo opera a serviço das forças da dominação econômica e
da repressão ao pensamento independente [no Brasil chamada
estranhamente e assumidamente de repressão às “ideologias”].
Por uma “gramática de uma imaginação ética e social”
Segundo, os
educadores precisam assumir e dar-lhe bom uso, à noção de que cidadãos
alfabetizados para a crítica são absolutamente indispensáveis em
qualquer democracia, especialmente num momento em que a educação
universitária está sendo privatizada e submetida aos esforços da
restruturação neoliberal.
Aqui se trata de pôr a ética, a educação
cívica, a responsabilidade social e a solidariedade e compaixão, na
linha de frente do ensino-aprendizagem, de modo a combinar conhecimento,
ensino-aprendizagem e pesquisa com os rudimentos do que se pode chamar
de gramática de uma imaginação ética e social.
Implica levar efetivamente a sério
aqueles valores, tradições, histórias e pedagogias que promovam, no
coração de uma democracia real, um senso de dignidade, autorreflexão e
solidariedade e compaixão.
Terceiro, a
educação universitária tem de ser vista como direito, como ainda é no
Brasil, Alemanha, França, Noruega e Finlândia, não como privilégio para
poucos, como é nos EUA, Canadá e Reino Unido. Quarto, em mundo
movido a dados, números, porcentagens, e o conhecimento vai sendo
trocado por superabundância intoxicante de informação, os educadores têm
de capacitar os alunos para várias e diferentes alfabetizações, que vão
da alfabetização para leitura de texto, à alfabetização para leitura
visual e alfabetização para a cultura digital.
Os alunos têm de ser capacitados para
ultrapassar fronteiras, têm de saber pensar dialeticamente, e aprender
não apenas a consumir cultura mas também a produzir cultura.
Quinto, as escolas
universitárias têm de reivindicar e defender o direito de controlar a
natureza do próprio trabalho, de ter voz na modelagem de políticas de
Estado e governo, de ter seus empregos protegidos em termos da liberdade
de pensamento e manifestação.
Mitja Sardoč: Por que é importante
analisar o relacionamento entre neoliberalismo e alfabetização civil
para a democracia como projeto educacional?
Henry Giroux: A hegemonização pelo
neoliberalismo, na política dos EUA, tornou visível um analfabetismo
profundo na sociedade, para a vida democrática, ativo como doença
endêmica mortífera, o descaso contra a racionalidade, que foi construído
durante décadas. Também aponta o enfraquecimento dos elos cívicos, o
desfazimento da cultura cívica, civil, o declínio da vida pública e a
erosão de qualquer noção de cidadania partilhada.
Conforme as mentalidades e moralidades ‘de mercado’ vão apertando as
garras sobre todos os aspectos da sociedade, as instituições
democráticas e esferas públicas vão sendo reduzidas, se não
completamente excluídas. Ao ritmo em que essas instituições vão sendo
extintas – de escolas públicas a mídia alternativas e centros públicos
de atendimento à saúde – há também grave erosão do discurso de
comunidade, justiça, igualdade, valores públicos e o bem comum.
Ao mesmo tempo, razão e verdade não são sequer questionadas como teriam
de ser, nem os assuntos ou argumentos bem informados, mas atacados com
fúria e demonizados – completamente banidos do mundo envenenado do
jornalismo de notícias forjadas. Por exemplo, a linguagem pública está
sob ataque, verdade e razão são atropeladas (de fato, desde Bush, Obama,
hoje com Trump) e palavras e frases são esvaziadas de qualquer
substância ou invertidas até se converterem no inverso, tudo isso
empurrado por tempestades de tuítos de autoridades no poder, ou no
espetáculo dos torsos falantes de redes comerciais de circo, como Fox
News.
Essa sombria realidade indica um fracasso no poder da imaginação civil
cívica, da vontade política e da democracia aberta. É parte também de
uma política que despe o mundo social de quaisquer ideais democráticos e
mina qualquer esforço para compreender a educação como bem público.
Hoje, sob o neoliberalismo não assistimos apenas a um simples projeto
político que se consolida em mãos da elite livre-empresarial e
financeira, mas, também, a uma ativa reformatação do próprio significado
do que seja alfabetização e educação, reformatação que aquela elite
considera crucialmente importante para bloquear a formação de cidadania
bem-informada e de qualquer sociedade efetivamente democrática.
Em tempos em que a alfabetização, o letramento e o pensamento criativo
tornam-se perigosos para as forças antidemocráticas que governam todas
as instituições econômicas e culturais dos EUA [muito mais, sim, no
Brasil-2018 do governo golpista de Bolsonaro (NTs)], a verdade passou a
ser vista como ‘ameaça à segurança’; a ignorância, como virtude e o
pensamento crítico é demonizado e tratado como lixo e cinzas.
Sob o reinado dessa arquitetura ‘normalizada’ de falso bom-sensismo, a
alfabetização e o letramento são vistos com desdém, as palavras são
reduzidos a dados e a ciência é misturada à pseudociência. Cada vez mais
só se veem traços de pensamento crítico empurrado para áreas marginais e
não hegemônicas da cultura. E a ignorância torna-se o princípio
fundamental em torno do qual se organiza a vida da sociedade nos EUA
[muito mais, sim, no Brasil-2018 do governo golpista de Bolsonaro
(NTs)].
Nesses 40 anos de reinado do neoliberalismo, a linguagem foi
militarizada, entregue a publicitários e anunciantes, todo o jogo dá
destaque à estupidez e à ignorância, e reina um anti-intelectualismo
culturalmente vergonhoso sancionado pelo poder eleito não raro mediante
fraude. Some a isso uma cultura das ‘celebridades’ que produz sem
próprio ecossistema de entretenimento idiotizante, de choque pelo mau
gosto e pela violência.
E acrescente também a figura de intelectuais públicos apalhaçados, ou de
fantoches imbecilizados fazendo as vezes de intelectuais públicos,
quando não visivelmente perturbados e/ou pervertidos, a propagandear
formas infantiloides de masculinidade ou de ‘fazer justiça’, e que
definem a mentalidade e a violenta estupidez do provocador covarde como
se fossem eventos da natureza, ao mesmo tempo em que vão atropelando
qualquer senso exequível de ação social e de trabalho político de
esclarecimento com ambição civilizatória.
A cultura do analfabetismo construído também é reproduzida por um
aparelho ‘midiático’ que vive do comércio de fantasias e ilusões, e de
vender violência.
Nessas circunstâncias, o analfabetismo social e político torna-se a
regra, e a educação passa a existir como eixo em torno do qual gira uma
versão de política-zumbi neoliberal, cuja principal serventia a favor do
poder neoliberal é que destrói e exclui da ideologia social, das
políticas e das instituições que agora controlam as instituições nos EUA
e em todo o hemisfério dependente dos EUA.
Na era do analfabetismo construído, há
muito mais em operação que simplesmente o cancelamento do
ensino-aprendizagem produtivo, de ideias e de conhecimento. Nem a
imposição crescente do reinado desse analfabetismo construído pode ser
atribuída só ao crescimento das novas chamadas ‘mídias sociais’, à
cultura do ganho imediato e da gratificação instantânea.
Ao contrário, o analfabetismo construído
é projeto político e educacional central para um conjunto de políticas e
para a propagação do ideário livre-empresarial de direita, projeto que
opera agressivamente para despolitizar os cidadãos e torná-los cúmplices
das forças econômicas controladas por agentes neoliberais e racistas
que impõem a miséria e o mais terrível sofrimento a milhões de pessoas.
Há mais em operação aqui do que o que
Ariel Dorfman chama de “estupidez criminosa”: aqui opera também uma
forma profundamente virulenta de fascismo neoliberal do século 21 e uma
cultura da crueldade, na qual a linguagem é injetada a serviço de cada
vez mais violência, ao mesmo tempo em que ataque sem cessar a imaginação
moral e ética e a noção de bem social comum.
No momento histórico que vivemos, o
analfabetismo social e político e a ignorância oferecem um simulacro de
sociedade na qual já praticamente ninguém, ou poucos, veem a importância
do letramento cívico civil tanto na educação universitária, que forma
especialistas, quanto na sociedade em geral.
Mitja Sardoč: Há algum ponto ou aspecto da agenda educacional neoliberal à qual os críticos tenham dado menos atenção que a necessária?
Henry Giroux: Qualquer
análise que se tente, de uma ideologia como o neoliberalismo, sempre
será incompleta. E a literatura sobre o neoliberalismo em suas
diferentes formas e contextos é abundante.
Para mim, três coisas são sempre subestimadas, ou insuficientemente analisadas. Primeira,
fala-se muito pouco de como o neoliberalismo funciona, não apenas como
modelo econômico para o capital financeiro, mas como pedagogia pública
que ‘atua’ mediante grande número desites e plataformas. Segunda, ainda
não se escreveu suficientemente sobre a guerra que o neoliberalismo
move contra qualquer noção democrática de socialidade e contra o próprio
conceito de social.
“Falta explicar às massas como opera o fascismo neoliberal”
Terceiro, num momento em que se
ouvem ecos cada vez mais claros de um fascismo que supúnhamos que
tivesse ficado no passado, pouco se fala sobre a relação que une
neoliberalismo e fascismo – o que chamo de fascismo neoliberal.
Falo especialmente da relação entre o sofrimento e a miséria que o
neoliberalismo espalha por onde passa, e a ascensão do suprematismo
branco.
Defino o fascismo neoliberal como,
simultaneamente, um projeto e um movimento, que operam como força que se
aplica na direção de enfraquecer, quando não de destruir, todas as
instituições que organizam uma democracia , minando todos os mais
valiosos princípios, sem os quais a dita democracia não é democracia.
Assim, o fascismo neoliberal garante
terreno fértil onde semear a arquitetura ideológica, os valores
pervertidos e as relações sociais do racismo que são produzidas e
sancionadas em regimes fascistas.
O neoliberalismo e o fascismo dão-se as
mãos e avançam num projeto-movimento mutuamente compatível e confortável
para ambos, no qual se conectam os piores excessos do capitalismo, com
os ideais do fascismo: o culto da guerra e da morte, o ódio à razão e à
verdade; uma celebração populista de algum ultranacionalismo [no caso do
Brasil, os fascistas são ultranacionalistas, mas praticam o
ultranacionalismo sionista israelense! (NTs)] e de uma autodeclarada
pureza racial dos brancos; supressão das liberdades e do direito de
dissentir; promoção cultural de mentiras, calúnias, do ‘espetáculo’ e do
espetaculoso, a demonização do diferente, um discurso fracassista
pró-redução e contenção; propaganda a favor da violência mais brutal,
até o estabelecimento de um estado de violência sob as formas mais
heterogêneas.
Como projeto, o fascismo neoliberal
destrói todas as instituições essenciais da democracia e consolida o
poder nas mãos de uma elite financeira. Como movimento, produz e
legitima a desigualdade econômica e o sofrimento humano mais sinistro,
privatiza bens públicos, desmantela agências essenciais da governança
democrática e individualiza todos os programas sociais. Além disso,
transforma o estado político em estado livre-empresarial; e usa as
ferramentas da vigilância, da militarização e da ‘lei’ e da ‘ordem’ para
desacreditar a mídia-empresa que não seja completamente subserviente à
finança, minar as liberdades civis e ridicularizar e censurar todos os
críticos.
Falta portanto, na minha opinião, que os
críticos assumam, como objeto de estudo e de crítica, a evidência de
que o neoliberalismo é a face de um novo fascismo. Assim sendo, falta
ensinar aos mais pobres a repudiar a noção de que capitalismo financeiro
e democracia seriam uma e a mesma coisa. Falta também ajudar os
cidadãos a renovar a fé nas promessas de um socialismo democrático, a
criar novas formações políticas em torno de uma aliança de diversos
movimentos sociais. E falta que os especialistas levem realmente a sério
a necessidade de pôr a educação no centro da própria vida
política.*******
[1] De: “Audit culture and Illiberal governance: Universities and the politics of accountability” [Cultura da auditagem e governança não liberal], Cris Shore, 2008 (resumo, aqui traduzido)
“Os imperativos econômicos do neoliberalismo, combinados com as
tecnologias da Nova Administração Pública provocaram mudanças profundas
na organização dos locais de trabalho em muitas sociedades capitalistas
contemporâneas. Práticas de mensuração, incluindo ‘indicadores de
desempenho’ e ‘benchmarking’ [tabelas de desempenho comparativo]
são cada vez mais usadas para medir e reformar organizações do setor
público, e melhorar a produtividade e as condutas de indivíduos em
inúmeras profissões. Esses processos resultaram no desenvolvimento de
uma cada vez mais penetrante invasiva ‘cultura de auditagem’, que extrai
sua legitimidade da ideia de que estaria promovendo a ‘transparência’ e
os mecanismos e processos para cobrar e prestar contas [ing. transparency and accountability].
A partir de exemplos do Reino Unido, particularmente da reforma das
universidade pós-1990s, esse artigo propõe-se a analisar as origens e a
disseminação dessa ‘cultura da auditagem’, e teoriza algumas implicações
dela para a construção de subjetividades acadêmicas. As perguntas que
faço são: Como essas tecnologias da auditagem estão remodelando o
ambiente de trabalho e que efeitos têm elas sobre o comportamento (e a
subjetividade) dos acadêmicos? O que a análise da ascensão do
gerencialismo [ing. managerialism] nos diz sobre processos
históricos mais amplos de poder e mudança em nossa sociedade? E por que
os acadêmicos são aparentemente tão cúmplices e tão incapazes de
resistir contra esses processos?” [NTs]
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